Foto: Programa de Conservação Ex-situ/Arquivo

Já há crias do lince-ibérico que veio de Espanha para ficar com fêmea de Serpa

A viagem de 170 quilómetros do lince-ibérico Mundo começou em Doñana (Andaluzia) e terminou em Serpa. O desfecho não podia ser mais feliz. Este animal provou que as populações de linces de Doñana e do Vale do Guadiana estão ligadas e conseguiu ser o pai da primeira ninhada conhecida de 2017 na natureza em Portugal, foi anunciado hoje.

 

Mundo, com dois anos de idade, nasceu na natureza na população de Doñana, onde vivem 76 linces-ibéricos. Este é um dos núcleos de lince-ibérico (Lynx pardinus), espécie Em Perigo de extinção, com uma população mundial de 483 animais.

Em Novembro passado, Mundo ainda foi visto em Doñana mas, em Abril, foi encontrado em território português, através de fotoarmadilhagem, pelos técnicos da equipa de seguimento do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). E não estava sozinho.

Percorreu 170 quilómetros e, na região alentejana de Serpa, encontrou Malva. Esta fêmea, reintroduzida a 16 de Fevereiro de 2016 no Vale do Guadiana (concelho de Mértola), escolheu fixar-se no concelho de Serpa, num território um pouco afastado, mais para Norte, do núcleo de 12 linces com território estabelecido em Portugal, no Vale do Guadiana. Mas isso não foi impedimento para o macho Mundo, que a conseguiu encontrar. Terão acasalado em Dezembro.

“Os vestígios encontrados no campo e a fotoarmadilhagem indicam que o macho se mantém junto a esta fêmea, pelo que é altamente provável que seja o progenitor da nova ninhada”, explica o ICNF em comunicado, enviado hoje à Wilder.

Desde Março, Malva está “estabilizada num território tranquilo situado perto do rio Guadiana, no concelho de Serpa, e mantém-se junto às suas crias”, acrescenta o mesmo comunicado.

“Esta dispersão (de um lince) é diferente das outras porque não teve um destino incerto, antes acabou em reprodução”, explicou à Wilder Margarida Fernandes, do ICNF. “Este macho terá seguido por corredores naturais”, fazendo uma viagem de 170 quilómetros entre Doñana e Serpa. “Ainda não sabemos muito sobre como os linces se orientam espacialmente e como comunicam entre si mas sabemos que tendem a seguir rotas históricas. Depois podem encontrar outros linces ou não.”

A dispersão de linces jovens, à procura de territórios com alimento e outros felinos de barbas, é um fenómeno comum e já foram confirmados casos de deslocações de longas distâncias entre Portugal e Espanha. Como os linces Caribou (em 2010), Hongo (2013), Kahn e Kentaro (2015) e Lítio (2016). Mas o risco de mortalidade é elevado. Dois destes animais acabaram as suas viagens atropelados em Portugal.

A viagem de Mundo mostra que há uma ligação real entre duas populações selvagens de lince-ibérico, com um corredor natural entre Portugal e Espanha. Até agora pensava-se que a população do Parque Nacional de Doñana “estava perigosamente isolada de outras áreas de ocorrência de lince e muitos animais, aí nascidos, não conseguiam uma dispersão bem sucedida”, salienta o ICNF.

A população de Doñana, com uma baixa variabilidade genética, tem recebido especial atenção do projecto Iberlince, que quer recuperar a distribuição histórica do lince-ibérico. Há alguns anos que decorre uma acção de reforço genético com linces provenientes da Serra Morena, onde existe hoje o maior núcleo de linces-ibéricos. “Actualmente, 60% das crias que nascem em Doñana-Aljarafe são descendentes dos linces libertados procedentes da Serra Morena”, avança o Censo ao Lince-Ibérico de 2016.

Agora, o caso do lince Mundo mostra que pode haver troca genética com a população portuguesa também. “Este caso do Baixo Alentejo indica que a viabilidade dos linces nesta zona de Espanha poderá também depender de Portugal”, segundo o ICNF.

Trabalhar para ligar as novas populações de linces às populações estáveis da Andaluzia é uma das prioridades na conservação da espécie para 2017, segundo o Iberlince. Tanto mais que o lince-ibérico tem uma das menores diversidades genéticas do mundo, foi revelado em Dezembro passado por uma equipa de 50 cientistas que conseguiu sequenciar o genoma da espécie. A investigação, publicada na revista Genome Biology, concluiu que o ADN do lince-ibérico sofre de uma “erosão extrema”. Na verdade, o genoma do felino das barbas tem menos diversidade genética do que outros mamíferos ameaçados, como o diabo-da-Tasmânia, ou de aves, como o íbis-japonês.

 

Quatro ninhadas confirmadas na natureza

Actualmente, a população do Vale do Guadiana conta com 12 linces adultos e subadultos, cinco linces nascidos na Primavera de 2016 e com as crias de 2017. Por enquanto conhece-se a ninhada de Malva e Mundo, a primeira do ano em Portugal, “de outras que se esperam”, segundo Margarida Fernandes. Há, pelo menos, quatro fêmeas territoriais, segundo o Censo ibérico à espécie.

Em Espanha este ano já estão confirmadas três ninhadas nascidas na natureza. A fêmea Mesta teve duas crias na Serra Morena Oriental (Ciudad Real), a fêmea Kiowa teve duas crias, também na Serra Morena Oriental e Malvasía, uma fêmea primeiriça que vive em Montes Toledo (Castela-La Mancha), teve quatro crias.

Os esforços para recuperar as populações de lince-ibérico, nos matagais mediterrânicos e na rede de centros de reprodução em cativeiro, têm permitido nos últimos anos um aumento do número de animais na natureza. Em 2014 eram 327; em 2015 o número subiu para 404 e em 2016 foi de 483.

A maior população fica na Andaluzia. É a de Andújar-Cardeña, seguida pela população de Doñana-Aljarafe, de onde veio o lince Mundo. Os outros núcleos populacionais começaram a nascer em 2009, com as reintroduções de linces na natureza em Guarrizas e Gaudalmellato e depois em Montes de Toledo, Sul de Badajoz, Serra Morena Oriental e Vale do Guadiana (Portugal).

O grande objectivo é recuperar a distribuição histórica de uma espécie que se estima viver na Península Ibérica há, pelo menos, 27.000 anos.

Este ano continuam os esforços de reprodução em cativeiro nos cinco centros da Península Ibérica (quatro em Espanha e um em Portugal) e as reintroduções na natureza, com a libertação de um total de 40 linces no total (oito no Vale do Guadiana).

 

[divider type=”thick”]Saiba mais.

Saiba como é cuidar dos linces no Vale do Guadiana.

Leia a nossa série “Como nasce um lince-ibérico” e conheça os veterinários, video-vigilantes, tratadores e restante equipa do Centro Nacional de Reprodução (CNRLI) em Silves.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.