Fotografia: ICNF

Veneno matou 150 animais protegidos em dez anos em Portugal

O veneno é uma arma usada há milhares de anos numa guerra contra os animais selvagens. De 2003 a 2014 morreram 145 indivíduos de espécies protegidas em Portugal. A lince Kayakweru morreu no mês passado. Ricardo Brandão, do Programa Antídoto, espera que não tenha sido em vão.

As razões são várias mas o resultado é sempre o mesmo. Um pouco por todo o país há veneno escondido nos campos e nas cidades e a morte surge mais ou menos rápida, mas sempre dolorosa.

De 1992 a 2014 morreram envenenados 233 indivíduos de espécies protegidas em Portugal, segundo dados do Programa Antídoto, plataforma que reúne 29 entidades para combater o uso ilegal de venenos. No topo desta lista surgem 77 grifos, 29 lobos e 21 milhafres-reais. Mas também morreram ginetas, abutres-pretos, britangos, águias-reais, águias-d’asa-redonda e cegonhas-brancas.

Nos últimos dez anos (2003 a 2014) foram registados 475 casos de envenenamento de animais em Portugal com um total de 1534 animais mortos. Destes, 145 são de espécies protegidas; 115 são espécies cinegéticas.

Nesta história, o dia 8 de Novembro de 2003 ficou como um marco. Em Idanha-a-Nova, 33 grifos, três abutres-pretos e três milhafres-reais morreram por terem ingerido uma ovelha com veneno, destinada a matar cães assilvestrados. Menos de um ano depois estava a funcionar o Programa Antídoto.

Por que razão se espalham venenos? “Depende”, diz Ricardo Brandão, médico veterinário coordenador do CERVAS (Centro de Ecologia, Recuperação e Vigilância de Animais Selvagens), em Gouveia, e membro da equipa do Programa Antídoto. Ricardo conhece histórias de pássaros envenenados por comerem fruta nos pomares, lontras mortas por pescadores de rio ou crias de aves mortas nos ninhos porque os progenitores lhes deram alimento tóxico sem disso se aperceberem. Mas estes não são os casos mais frequentes.

“Nas zonas onde há carnívoros, como o lobo-ibérico, o veneno é uma perseguição directa para proteger o gado. Isto acontece mais no Minho e em Trás-os-Montes. Já na Beira Interior e no Alentejo é mais pela gestão cinegética e os iscos são colocados para matar raposas e sacarrabos”, explica à Wilder.

Kayakweru, a fêmea de lince-ibérico encontrada morta na zona de Mértola a 12 de Março, morreu envenenada mas Ricardo Brandão acredita que o isco não era para ela. “Não tenho certezas, mas diria que neste caso, e tendo em conta a zona, há uma grande probabilidade de ter sido veneno para raposas e sacarrabos.”

Nem em Espanha há muitos casos de envenenamento de linces-ibéricos. Segundo o mais recente Censo às Populações Andaluzas de Lince-ibérico, relativo ao ano de 2014, a causa de morte mais frequente é o atropelamento. Hoje existem 327 linces-ibéricos na natureza, em quatro grandes núcleos populacionais, dos quais 97 são fêmeas e 71 crias. Segundo o censo espanhol, durante 2014 morreram 33 linces (26 na Serra Morena e sete em Doñana); 21 dos animais morreram atropelados.

E pode não ser fácil encontrar o rasto do crime. “Nem sempre o animal acaba por morrer no exacto local onde o isco com veneno foi colocado”, diz Ricardo Brandão. “Há tóxicos muito potentes. Nestes casos, os animais morrem passados 15 a 20 minutos. Não têm qualquer hipótese. Mas há outros venenos cujos sintomas são graduais e podem durar uma semana. Além disso, a maioria dos animais quando se começa a sentir mal esconde-se ou tenta ir beber água”.

O que falta

Ainda há muito a fazer quanto à investigação criminal destes casos, à fiscalização no terreno e até mesmo quanto à sensibilização de juízes e da população que, muitas vezes, tem medo de denunciar situações, resume o veterinário.

“As pessoas não devem ter medo de denunciar as situações de que têm conhecimento ao Sepna (Serviço de Protecção do Ambiente da GNR) e ajudar as autoridades dando informação credível”, acrescenta.

Este veterinário quer acreditar que “esta morte do lince-ibérico sirva para algo, para se olhar para este problema com mais atenção e para se avançar mais na luta contra o veneno que mata animais selvagens”.

Para já, Ricardo Brandão gostaria de ver equipas cinotécnicas da GNR a fazer “inspecções periódicas em zonas com um histórico conhecido ou conflitos”. Isso tem um efeito de dissuasão, considera.

“Há zonas em que usar venenos é um legado histórico, algo cultural. Temos em circulação venenos que podem ser muito perigosos, mesmo para os humanos. É necessário conhecer o que se está a passar. Os venenos estão aí”.

Segundo o veterinário, “também é importante pensar que há alternativas legais e selectivas para controlar predadores; o veneno não é”. E acima de tudo, “precisamos de compreender o papel dos animais selvagens e ter mais respeito por eles”.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.