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Crónicas naturais: andorinhas do frio

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Paulo Catry, professor e investigador do ISPA – Instituto Universitário, ficou maravilhado com as andorinhas-das-rochas que viu numa visita ao Cabo Espichel. Ao contrário das outras quatro espécies de Portugal, estas ficam por cá o ano inteiro e “só se observam quando os dias encurtam e o calor desaparece, no outono e no inverno: há andorinhas que não fazem mesmo a primavera!”

Cabo Espichel, 14 Novembro 2021

Casa da Ronca no Cabo Espichel, a pique sobre o mar. Vim muito cedo, a previsão era de calmaria com céus azuis e apeteciam vistas largas.

Farol centenário do Cabo Espichel, poiso regular para as andorinhas-das-rochas. Foto: Paulo Catry

Sons de corpos pesados que estilhaçam a superfície vidrada do oceano: é um grupo com dezenas de golfinhos-comuns de passagem, quase na base da falésia. As crias do ano já estão a ficar crescidas, mas ainda nadam no conforto do flanco das mães.

Andam umas quarenta cagarras com um comportamento curioso: poisam muito coesas no mar e depois voam às voltas por ali, sempre em grupo, não se afastam muito e voltam a poisar. Quase não mergulham, não deve ser grande pescaria. Aliás, vem um alcaide tentar persegui-las e roubar-lhes peixe, mas não leva nada. Os alcatrazes que passam não ligam. Se calhar as cagarras estão só a combinar a migração rumo ao sul, é mais que tempo disso.

Um falcão-peregrino sobe rapidamente, em voo batido para leste, até ser quase invisível no céu alto; depois muda de direção e vai caçar sobre o mar. Num tremendo voo picado perfura o espaço com um vigor quase impossível, parece ultrapassar a aceleração da gravidade, mas o alvo e o desfecho ficam escondidos por detrás de um promontório.

O que mais me chama a atenção é meia centena de andorinhas-das-rochas que anda a comer e a brincar de volta do farol. Ao contrário das outras quatro espécies de andorinhas que por cá temos, as das-rochas são residentes, ficam por Portugal o ano inteiro. Ainda assim, muitos indivíduos migram, só que geralmente não chegam à África tropical.

Não é pelas cores ou por outros atributos físicos que as andorinhas-das-rochas Ptyonoprogne rupestris se destacam. Foto: Paulo Catry

Não sei ao certo de onde vêm estas andorinhas, mas a espécie não nidifica por aqui. Sabe-se que no tempo frio chegam à zona de Gibraltar andorinhas-das-rochas vindas dos Alpes e dos Pirenéus e provavelmente de outras montanhas do norte ibérico; as do Espichel não devem ser diferentes.

Ao longo de quase todo o litoral português, as andorinhas-das-rochas só se observam quando os dias encurtam e o calor desaparece, no outono e no inverno: há andorinhas que não fazem mesmo a primavera!

Se bem que viajantes de rotas mais modestas que as outras andorinhas, as das-rochas parecem ter mais cabeça e estar mais atentas ao que as rodeia. Adoram brincar em confrontações aéreas, como estas junto ao farol, que certamente não estão à luta por territórios (que não têm), nem competem por ninhos ou parceiros (que não é tempo nem sítio disso).

Andorinha-das-rochas. Foto: Imran Shah/WikiCommons

Brincar é um comportamento mais típico dos mamíferos. Nas aves parece ser relativamente raro, ocorre sobretudo em espécies reconhecidamente inteligentes, como corvos ou papagaios* (aliás, o tema da brincadeira é pouco falado entre ornitólogos e mesmo omisso em várias enciclopédias de ornitologia). Mas andorinhas-das-rochas não são umas aves quaisquer. Quando está morno e soalheiro, como hoje, exibem-se em acrobacias complexas e interagem em voos rápidos e ruidosos, a toda a hora.

Também são curiosas, vêm observar-me de perto, por vezes com um voo rasado, ocasionalmente acompanhado de um pio. Têm uma bela diversidade de vocalizações. Parece que conversam, em vez de repetirem uma qualquer lengalenga de pássaro desmiolado.

Andorinhas-das-rochas perto do Mosteiro de Leyre, Espanha. Foto: Amikosik/WikiCommons

Na primavera gostam de jogos com material usado nos ninhos, como palhas ou penas, deixando-as cair do alto e voltando a apanhá-las no ar, repetidamente, como quem acha graça à habilidade. Dá a ideia de que são felizes.

Há bocado apareceu uma andorinha-das-chaminés (tão atrasada que vai na migração!) e foi poisar num fio elétrico. Foi logo uma andorinha-das-rochas curiosa ter com ela, peneirando por um ou dois segundos mesmo à sua frente, imóvel no ar. Não ouvi bem, mas tenho a certeza de que lhe perguntou: “o que é que andas por aqui a fazer”? A outra não soube responder.

Casa da Ronca, Cabo Espichel, onde antigamente funcionavam as sirenes de alerta à navegação no nevoeiro. Foto: Paulo Catry

Um dia ainda gostava de estudar andorinhas-das-rochas… tantas maravilhas e tão pouco tempo. Devaneios.

* Emery NJ & Clayton NS 2015. Current Biology


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, na série Crónicas Naturais e também publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.