Foto: GerritR/Wiki Commons
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O que procurar no Outono: o narciso-bravo

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Carine Azevedo apresenta-nos uma flor bela e perfumada, que desponta após as primeiras chuvas do Outono, e que por estes dias podemos encontrar pelo Algarve e pelo Alentejo.

Quando pensamos em narcisos, vêm-nos logo à ideia aquelas flores estreladas de cor amarela que surgem na primavera. Na verdade, os narcisos também podem ser brancos e florescer no outono.

O narciso-bravo (Narcissus serotinus), também conhecido como narciso-da-tarde, surge nesta estação, com a chegada das primeiras chuvas e quando as temperaturas começam a descer.

Amaryllidaceae

O narciso-bravo é uma planta da família Amaryllidaceae, que compreende cerca de 2300 espécies distribuídas por cerca de 80 géneros, com uma distribuição natural cosmopolita.

Os membros que compõem esta família são plantas monocotiledóneas, perenes, herbáceas e apresentam caule subterrâneo – bolbo ou, mais raramente, rizoma.

Dois narcisos-bravos com as suas seis pétalas brancas
Foto: Nunosanchez/Wiki Commons

Os bolbos e os rizomas são órgãos subterrâneos que acumulam reservas nutritivas e que permitem que a planta se mantenha “adormecida” durante a época do ano mais desfavorável, possibilitando a sua renovação assim que se verificarem as condições ambientais ideais. Quando surgem as primeiras chuvas, estes deixam o estado de dormência e iniciam a sua atividade, desenvolvendo a parte aérea, composta apenas por folhas e flores.

Os membros desta família são conhecidos pelas suas múltiplas aplicações: condimentares, hortícolas, ornamentais e medicinais. Algumas das plantas mais conhecidas são a cebola (Allium cepa), o alho (Allium sativum), o cebolinho (Allium schoenoprasum), o agapanto (Agapanthus africanus), a amarílis (Amaryllis belladonna), a clívia (Clivia miniata), entre muitas outras.

Em Portugal ocorrem cerca de 40 espécies nativas distribuídas por quatro géneros botânicos, das quais se destacam algumas das espécies mais representativas em toda a região continental: a campainha-amarela (Narcissus bulbocodium), o alho-porro (Allium ampeloprasum), a campainha-de-outono (Acis autumnalis) e o lírio-das-areias (Pancratium maritimum).

Nos arquipélagos da Madeira e dos Açores não há registo de espécies nativas desta família botânica, embora ocorram muitas espécies exóticas.

Narciso-bravo

A flor de um narciso-bravo
Foto: Miguel Porto/Flora-On

O narciso-bravo (Narcissus serotinus) é uma planta vivaz, herbácea, glabra e bolbosa. É formada por um bolbo sub-globoso, revestido com túnicas externas membranosas, de cor acastanhada, do qual parte um escapo cilíndrico e verde-escuro, mais ou menos liso e sólido, com uma única folha. 

A folha é linear, verde-escura, de margem lisa e secção circular, não torcida e obtusa. Surge, em regra, apenas após a floração, circundada por uma bainha basal, que é coberta quase inteiramente pelo prolongamento das túnicas externas do bolbo.

A floração deste narciso ocorre de outubro a novembro, podendo, mais raramente, estender-se até dezembro.

As flores são perfumadas, hermafroditas, autocompatíveis e surgem solitárias ou, mais raramente, em umbelas de duas a três flores sobre um pedicelo verde, reto e de secção circular. Antes de florescerem, encontram-se protegidas por uma espata basal, que é formada por uma bráctea lanceolada e membranosa, de cor castanho-clara.

As flores são também mais ou menos actinomórficas, eretas ou ligeiramente pendentes, e são formadas por cinco tépalas brancas elípticas, às vezes obovadas, mais ou menos patentes e obtusas no ápice e que por vezes são apiculadas. A coroa central da flor é amarela-clara e muito mais curta que as tépalas.

Quanto ao fruto, trata-se de uma cápsula oblongo-ovóide, sendo as sementes angulosas, negras e brilhantes.

Origem e ecologia

O narciso-bravo é originário da região do Mediterrâneo Ocidental, especificamente no Sudoeste da Península Ibérica (Espanha e Portugal) e Noroeste de Marrocos. 

Em Portugal, só se encontra a Sul, principalmente em áreas do Interior, longe da costa atlântica, nas regiões do Algarve, Alto e Baixo Alentejo. 

Esta planta é relativamente frequente em clareiras de florestas e de matos, prados húmidos, pastagens, bermas de caminhos e em montados de azinho. Tem preferência por locais com exposição solar plena ou sombra parcial, em encostas pedregosas ou lugares arenosos e secos, embora tenha necessidades médias de água – sobretudo para desencadear o desenvolvimento da parte aérea, no início do outono.

Duas flores juntas de narciso-bravo, sobre a terra castanha
Foto: GerritR/Wiki Commons

Esta espécie consta da Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas da Internacional Union for Conservation of Nature (IUCN) e está classificada como Pouco Preocupante (‘Least Concern’).

Em Portugal e em Espanha, o narciso-bravo sofreu um grande declínio, embora ainda existam populações densas, algumas das quais localizadas em áreas protegidas como o Parque Nacional de Doñana, o Parque Natural do Tejo Internacional e a Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António. 

Muitas das populações que ocorriam em território nacional desapareceram com a construção da Barragem do Alqueva, no ano 2000. As restantes ficaram severamente fragmentadas e mais pequenas.

No Norte de África, o excesso de pastoreio e o desenvolvimento urbano são as principais ameaças para a espécie. Existe também uma ameaça potencial de futuro sobre a exploração desta planta para fins comerciais. No entanto, não se espera que estas ameaças causem um declínio severo da espécie num futuro próximo.

O narciso-da-tarde

A designação científica desta espécie surge associada à mitologia grega, à beleza e perfume da flor e à sua época de floração.

O nome do género Narcissus tem origem em Narciso, um jovem e belo rapaz pelo qual todas as mulheres e homens se apaixonavam. No entanto, Narciso desprezava todas as propostas de amor. Como vingança, os deuses levaram-no a apaixonar-se pela sua própria imagem refletida na água de um lago. Completamente apaixonado e incapaz de se separar da imagem refletida, acabou por cair e morrer afogado. Junto ao lago surgiu uma flor extremamente bela, a que deram o nome de Narciso. 

Outros autores sugerem que o nome Narcissus se deve ao cheiro intenso e inebriante de algumas flores do género e deriva do grego narkáo – que significa narcótico, planta tóxica. 

Muitos narcisos-bravos em flor num prado
Foto: Cristina Estima Ramalho/Flora-On

Já a designação serotinus deriva do latim e significa “tarde” ou “de aparecimento tardio”, referindo-se ao facto da época de floração ser tardia, no outono. O seu nome comum – narciso-da-tarde – deve-se igualmente ao facto da sua época de floração ser mais tardia.

Não há evidências de uso tradicional desta planta na jardinagem. No entanto, a floração tardia, aliada à beleza ímpar das suas flores, embora de duração efémera, tornam o narciso-bravo numa planta particularmente interessante em jardins e noutros espaços verdes, ou simplesmente em vasos e floreiras, para decoração dos espaços, numa época em que as flores são mais raras.

Por outro lado, esta é uma planta altamente tóxica. Todas as partes contêm licorina, um alcaloide tóxico, que por vezes é letal se consumido em grande quantidade. Os sintomas de intoxicação por licorina são vómitos, diarreia e convulsões. O simples contacto com a pele pode causar irritação cutânea. 

É aconselhável manter o narciso-bravo longe do contacto com animais de estimação e longe das crianças. Embora não pareça comestível, o bolbo e as folhas podem ser confundidas com cebolas, ou alho-porro, resultando num consumo acidental. Após tocar na planta é aconselhável lavar bem as mãos ou outras partes do corpo que tenham estado em contacto.

Uma flor de narciso-bravo junto a um muro de pedra
Foto: Nunosanchez

Por outro lado, a presença de licorina leva a concluir que esta planta é uma fonte interessante de alcaloides com potencial atividade farmacológica. Os alcaloides do tipo licorina mostraram propriedades notáveis, como potentes agentes antimaláricos e anti-tripanossomas.

Na medicina caseira, aliás, atribuem-se propriedades antiespasmódicas e um tanto narcóticas a este narciso.

Embora seja uma espécie autocompatível, necessita do apoio dos insetos para dispersar o seu pólen entre populações, sendo polinizada por insetos generalistas, nomeadamente borboletas diurnas. A dispersão de sementes também é limitada, porque as sementes não estão adaptadas à dispersão pelo vento, caindo simplesmente ao chão junto da planta mãe.

Seja qual for a estação do ano, Portugal está cheio de belas flores. 

No outono, procure e registe mais esta bela planta, mas lembre-se: leve para casa apenas fotos e partilhe-as nas redes sociais com #oqueprocurar #plantasdeportugal #floranativa e #àdescobertadasplantasnativas. Guarde as recordações e mais tarde volte a explorar. Vai ver que não se arrepende!


Dicionário informal do mundo vegetal:

Vivaz – planta que vive mais do que dois anos, renovando anualmente a parte aérea.

Herbácea – planta de consistência não lenhosa e verde.

Glabra – sem pêlos.

Bolbosa – planta que produz um bolbo, ou seja, um caule subterrâneo que contém substâncias nutritivas de reserva e que se mantém ativo ao longo de todo o ano, ainda que a parte aérea seja renovada anualmente.

Túnica – membrana que reveste e protege o bolbo.

Escapo – haste floral.

Bainha – parte basal e mais ou menos larga de certas folhas, que envolve mais ou menos o eixo.

Hermafrodita – flor que possui órgãos reprodutores femininos (carpelos) e masculinos (estames).

Autocompatível – capaz de se autofecundar (produz sementes viáveis por autopolinização).

Umbela – inflorescência em que as flores se agrupam em forma de guarda-sol.

Pedicelo – “pé” que sustenta a flor.

Espata – bráctea que rodeia e protege a flor ou a inflorescência.

Bráctea – folha modificada, localizada na base da flor que a protege enquanto está fechada.

Lanceolada – com forma de lança.

Actinomórfica – flor com simetria radial, ou seja a flor pode ser dividida em várias partes iguais.

Tépala – peça floral não diferenciada em pétala (geralmente colorida ou branca) ou sépala (geralmente verde), que protege a flor.

Apiculada – ponta curta e aguda.


Todas as semanas, Carine Azevedo dá-lhe a conhecer uma nova planta para descobrir em Portugal. Encontre aqui os outros artigos desta autora.

Carine Azevedo é Mestre em Biodiversidade e Biotecnologia Vegetal, com Licenciatura em Engenharia dos Recursos Florestais. Faz consultoria na gestão de património vegetal ao nível da reabilitação, conservação e segurança de espécies vegetais e de avaliação fitossanitária e de risco. Dedica-se também à comunicação de ciência para partilhar os pormenores fantásticos da vida das plantas. 

Para acções de consultoria, pode contactá-la no mail [email protected]. E pode segui-la também no Instagram.