Foto: Gozitano/Wiki Commons
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O que procurar no Verão: o lírio-das-areias

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Esta semana, Carine Azevedo fala-nos de uma planta habitante das dunas costeiras, que nos surpreende com o branco resplandecente e delicado das suas flores, dona de um aroma que enche as noites quentes e sem vento.

 

O lírio-das-areias (Pancratium maritimum) é fundamental na consolidação e equilíbrio dos sistemas dunares costeiros.

Conheçam esta bela planta, cujas delicadas flores brancas possuem um aroma leve que se torna mais intenso durante as noites quentes e sem vento.

 

A família Amarylidaceae

O lírio-das-areias é uma espécie da família Amarylidaceae, que engloba perto de 2.300 espécies. Algumas são bem conhecidas, como a campainha-amarela (Narcissus bulbocodium), o alho-porro (Allium ampeloprasum), a cebola (Allium cepa), o cebolinho (Allium schoenoprasum), a amarílis (Amaryllis belladonna), a campainha-de-outono (Acis autumnalis), o agapanto (Agapanthus africanus), entre muitas outras.

Os membros desta família são conhecidos pelas suas múltiplas aplicações: condimentares, hortícolas, ornamentais e medicinais, e por apresentarem caule subterrâneo – bolbo – de onde partem várias folhas para a superfície.

Em Portugal, esta família está representada por quatro géneros botânicos, dos quais se destaca o género Allium, por ser o mais representativo desta família em território continental, e o género Narcissus, pela riqueza de espécies endémicas de Portugal Continental e outras exclusivas da Península Ibérica.

Nos arquipélagos da Madeira e dos Açores não há registo de espécies nativas desta família botânica, embora ocorram muitas espécies exóticas.

 

Lírio-das-areias

O lírio-das-areias é também vulgarmente conhecido como lírio-branco-das-dunas, lírio-branco-das-areias, lírio-branco-das-praias, narciso-das-areais, narciso-marítimo, cebola-das-gaivotas, cebola-do-mar, entre outros. Ou seja, um sem fim de nomes para a mesma planta.

Foto: Yann an Aod/Wiki Commons

É uma planta vivaz, bolbosa, de porte herbáceo, que pode crescer até 50 centímetros de altura.

O lírio-das-areias possui um bolbo grande – caule subterrâneo, situado a grande profundidade – ovóide, esbranquiçado, formado por várias camadas e protegido por uma túnica membranácea de cor escura. É do bolbo que surgem, à superfície do solo, as folhas, que formam um pequeno tufo com cinco a seis folhas basais.

As folhas são grossas, oblongo-lineares, ligeiramente arredondadas na extremidade e têm tendência a ficar levemente torcidas (em espiral). São verde-azuladas, cobertas por uma substância cerosa, e não possuem pecíolo.

Foto: T. Kebert/Wiki Commons

As folhas surgem antes das flores, e podem secar ainda no período de floração, ficando apenas à superfície o escapo floral. O escapo floral é achatado, robusto e liso e pode medir 15 a 40 centímetros de altura.

A floração ocorre por um período longo, de maio a setembro, sendo mais efusiva durante os meses de verão.

Na extremidade do escapo surge uma inflorescência umbeliforme, composta por cinco a dez flores em pedicelos, protegidas por uma bráctea membranácea, ovado-lanceolada, que se abre e seca para dar lugar às flores.

As flores são grandes, brancas, perfumadas, actinomórficas e hermafroditas. A corola é formada por um tubo longo, gradualmente dilatado em coroa, amplamente em forma de sino, muito semelhante aos lírios. Daí alguns dos seus nomes comuns.

Foto: Tomi/Wiki Commons

O fruto é uma pseudo-cápsula coriácea, globosa-trigonal e com numerosas sementes, protegidas por uma camada esponjosa.

Já as sementes são angulosas, negras, mais ou menos lisas, brilhantes e grandes, mas leves.

Quanto à dispersão das sementes, é barocórica: depois de seco, o fruto abre-se e deixa-as cair no solo (areia). Por serem leves, são facilmente dispersas pelo vento. Por outro lado, a camada esponjosa que as protege permite que flutuem na água do mar e, assim, se dispersem a grandes distâncias.

Foto: Zeynel Cebeci/Wiki Commons

 

 Habitat e ecologia

O lírio-das-areias distribui-se abundantemente ao longo das faixa costeiras do Atlântico e do Mediterrâneo e ao longo da faixa litoral do mar Negro, onde se encontra em vias de extinção. Também ocorre nas Ilhas Canárias, Córsega, Sardenha, Sicília, Creta, Chipre e Ilhas do Egeu Oriental.

Em Portugal, ocorre naturalmente em toda a faixa do Litoral desde Caminha até Vila Real de Santo António, em areias e dunas, geralmente na duna primária e nos vales entredunares. Também ocorre no arquipélago dos Açores, onde terá sido introduzida.

O lírio-das-areias tem preferência por locais com exposição solar plena e solos leves (arenosos) e bem drenados, mesmo que sejam pobres, secos e áridos. É indiferente ao pH do solo, desenvolvendo-se tanto em solos levemente ácidos como neutros ou levemente alcalinos.

É tolerante às condições agrestes do verão, podendo crescer em condições de seca extrema, mas também suporta temperaturas negativas, até cerca de -5ºC, e geadas leves. Resistente à salinidade, pode crescer em solos salobros. Não tolera a sombra.

Esta planta tem a particularidade de se poder enterrar mais profundamente, para não secar, e de alongar os caules se ficar muito coberta de areia. Consegue estar submersa durante meses e manter intacto o seu poder de germinação.

 

Planta das dunas

A origem do seu nome científico deve-se, em geral, à sua excepcional resistência. O nome do género Pancratium deriva do termo grego pankration, que significa “poderoso, forte, que tudo supera”, provavelmente devido à sua capacidade de resistir às condições extremas do seu habitat, maioritariamente ambientes áridos, areias secas e salobras, sol e vento, ou em referência às supostas propriedades medicinais que possui.

O restritivo específico maritimum deriva do latim e significa “mar, marítimo, marinho, que cresce perto do mar”, em alusão ao tipo de habitat onde ocorre.

Foto: Freiermann.95/Wiki Commons

O lírio-das-areias, assim como muitas espécies vegetais que crescem na areia, como por exemplo o estorno (Ammophila arenaria), a morganheira-das-praias (Euphorbia paralias), o feno-das-areias (Elymus farctus), o cardo-marítimo (Eryngium maritimum), a alcachofra (Cynara cardunculus), a perpétua-das-areias (Helichrysum italicum) e a camarinha (Corema album), têm um papel fundamental na conservação dos ecossistemas dunares. 

Estas plantas são das primeiras a povoar a primeira linha das dunas junto ao mar. Desempenham um papel importante na prevenção da erosão das dunas e contribuem para a formação e a consolidação dos sistemas dunares.

Lagarta da borboleta noturna Brithys crini. Foto: Assianir/Wiki Commons

Esta planta também é imprescindível para a vida animal, pois dela depende a sobrevivência da borboleta noturna Brithys crini, vulgarmente conhecida como rosca-das-dunas. O lírio-das-areias é a planta hospedeira da Brithys crini: as larvas e as lagartas alimentam-se exclusivamente das suas folhas.

A polinização é entomógama ou entomófila, ou seja, realiza-se através da intervenção de insectos, sendo o principal agente polinizador a borboleta-colibri (Macroglossum stellatarum), que se distingue pela sua longa tromba com a qual recolhe o néctar da flor ainda em voo.

 

 Das dunas ao jardim e à arte

As flores brancas deslumbrantes e altamente ornamentais são um factor importante para incluir esta planta em qualquer projeto paisagístico. O perfume doce das suas flores, que é mais intenso durante a noite, dá-lhe um toque particular.

O lírio-das-areias pode ser utilizado em complemento com outras plantas, para a criação de jardins de areia junto ao mar, jardins de flores silvestres, jardins de pedras, canteiros ou bordaduras, para revestimento de encostas arenosas secas, para criar touceiras em relvados ou, simplesmente, para plantar em vasos e floreiras para terraços e varandas.

É também muito utilizado na cosmética. O extrato desta planta contribui para a hidratação global da pele, atua na síntese de melanina e na redução superficial da pigmentação de manchas na pele.

Por sua vez, os bolbos são potencialmente tóxicos. Contudo, há registo de terem sido utilizados na alimentação humana, depois de cozidos. As sementes seriam usadas como condimento.  

Também há registo da sua aplicação em medicina popular como hipotensor e purgativo, tendo sido igualmente usado para tratamento de asma e para combater a malária.

Esta planta, com flores brancas tão elegantes, inspirou artistas de diferentes áreas. Alguns retrataram a sua beleza em muitas ilustrações e pinturas:

Pierre Joseph Redouté, famoso ilustrador botânico do século XIX, retratou a delicadeza do lírio-das-areias por meio de um processo chamado de gravura pontilhada, técnica que permite amplas gradações de tom e sombreamento.

Na Casa das Mulheres em Akrotiri, Thera, Grécia, grandes plantas estilizadas foram pintadas nas paredes (século XVII aC.) e nas ruínas do Palácio de Knossos, em Creta, descobertas em 1878, também é possível encontrar frescos, datados de 1570-1470 aC., que mostram as flores desta planta.

 

Também vários poetas eternizaram esta planta nos seus poemas, como é o caso da Sophia de Mello Breyner:

“A minha esperança mora

No vento e nas sereias

É o azul fantástico da aurora

E o lírio das areias.”

Sophia de Mello Breyner Andresen, in “Dia do Mar”

 

E Frederico García Lorca, no seu poema “Cacida da Mão Impossível”, escreve:

(…) “Seria um lírio pálido de cal,

uma pomba atada ao meu coração,

 o guarda que na noite do meu trânsito

de todo vetaria o acesso à lua.” (…)

Tradução de Óscar Mendes, Federico García Lorca, in ‘Divã do Tamarit’

 

A planta da ressurreição

O lírio-das-areias também está envolvido em lendas e misticismos.  Como as suas flores são efémeras, a sua ligação com a morte é inevitável.

As suas flores foram consagradas a Perséfone que, na mitologia grega, é a deusa da vegetação, das flores, frutos e perfumes. Segundo a lenda, Perséfone terá sido condenada a eternamente passar por todas as fases da vida, incluindo a morte, a fim de voltar à vida, uma e outra vez.

Esta lenda levou a que, mais tarde, o lírio-das-areias se tornasse no símbolo da ressurreição.

Lendas à parte, sem dúvida de que não há outra planta na costa tão bonita como o lírio-das-areias, dadas as suas características especiais e a sua floração espetacular.

No seu próximo passeio à beira-mar, procure e contemple esta bela planta.

  


Dicionário informal do mundo vegetal:

 

Bolbo – caule subterrâneo de eixo curto, cujas folhas, transformadas em escamas, contém substâncias nutritivas de reserva e que se mantém ativo ao longo de todo o ano.

Vivaz – planta que vive mais do que dois anos, renovando anualmente a parte aérea.

Bolbosa – planta que produz um bolbo.

Herbácea – planta de consistência não lenhosa e verde.

Túnica – membrana que reveste o bolbo.

Oblongo-linear – folha estreita e comprida, em forma de elipse alongada, com o eixo maior três a seis vezes mais comprido que o menor, e com margens quase paralelas.

Pecíolo – pé da folha que liga o limbo ao caule.

Escapo – haste floral.

Inflorescência – forma com as flores estão agrupadas numa planta.

Umbeliforme – inflorescência em forma de umbela, em que as flores se agrupam em forma de guarda-sol.

Pedicelo – “pé” que sustenta a flor.

Bráctea – folha modificada, localizada na base da inflorescência que a protege enquanto está fechada.

Ovado-lanceolada – bráctea com base atenuada e à medida que chega ao ápice vai ficando com forma oval.

Actinomórfica – flor com simetria radial, ou seja a flor pode ser dividida em várias partes iguais.

Hermafrodita – flor que possui órgãos reprodutores femininos (carpelos) e masculinos (estames).

Corola – conjunto das pétalas (peça floral, geralmente colorida ou branca), que protegem os órgãos reprodutores da planta.

Pseudo-cápsula – fruto semelhante a uma cápsula – fruto seco, com várias sementes, que abre e deixa as sementes cair quando maduro.

Coriácea – que tem uma textura semelhante à casca da castanha ou do couro.

Trigonal – fruto triangular em secção transversal.

Dispersão barocárica – modo de dispersão das sementes por ação da gravidade, em consequência do seu próprio peso.

Polinização entomógama ou entomófila – realizada através da intervenção de insetos.

 


Todas as semanas, Carine Azevedo dá-lhe a conhecer uma nova planta para descobrir em Portugal. Encontre aqui os outros artigos desta autora.

Carine Azevedo é Mestre em Biodiversidade e Biotecnologia Vegetal, com Licenciatura em Engenharia dos Recursos Florestais. Faz consultoria na gestão de património vegetal ao nível da reabilitação, conservação e segurança de espécies vegetais e de avaliação fitossanitária e de risco. Dedica-se também à comunicação de ciência para partilhar os pormenores fantásticos da vida das plantas. 

Para acções de consultoria, pode contactá-la no mail [email protected]. E pode segui-la também no Instagram.

 


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