Ave extinta em Portugal surpreende e aparece em câmara de fotógrafo de natureza

Um bando de charrelas, também conhecidas por perdizes-cinzentas, foi captado no final de Janeiro por uma câmara de foto-armadilhagem no Norte do país, por Gonçalo Rosa. Este é o primeiro registo documentado conhecido em várias décadas desta espécie em Portugal, uma ave que se extinguiu depois de ter sido abundante até ao século XIX.

 

Ainda não eram 08h00 quando ela apareceu. Corpo arredondado em tons de castanho e cinzento. A neve branca cobria o bosque de giestas, mais altas do que uma pessoa. Em poucos segundos, esta charrela (Perdix perdix) deu-nos o primeiro registo documentado conhecido da sua espécie no nosso país em várias décadas. Era a manhã de dia 28 de Janeiro, numa zona montanhosa da região de Bragança.

 

Imagens de charrela ou perdiz-cinzenta from Wilder – Rewilding Your Days on Vimeo.

 

Pode dizer-se que ver charrelas em Portugal é uma experiência única. O Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal diz que esta ave está extinta no país. Sabe-se que em 2003, um animal foi encontrado morto na região de Bragança.

“Vejo muita coisa com as câmaras de foto-armadilhagem que instalo na natureza, como lobo-ibérico e gato-bravo”, contou à Wilder Gonçalo Rosa, 45 anos. “Naquele dia, a mesma câmara captou raposa e javali. Mas quando vi a perdiz-cinzenta, fiquei de queixo caído.”

Cerca de cinco horas depois da primeira charrela, a câmara fez um novo registo. “Era um bando de, pelo menos, cinco animais. Não estava à espera de as ver entrar pelo bosque.” Nas imagens, as charrelas procuram alimento por entre a neve que cobre o solo. Despreocupadamente.

“Nunca montei câmaras especificamente para perdiz-cinzenta. São para mamíferos. Mas é verdade que já andava atrás dela há algum tempo”, acrescenta Gonçalo Rosa, fotógrafo que, em 2014, captou na Serra de Montesinho dois ratos-das-neves (Chionomys nivalis), espécie para a qual ainda não havia registos em Portugal.

 

Gonçalo Rosa em trabalho na Serra de Grândola, Dezembro 2015

 

A história da perdiz-cinzenta é diferente da do rato-das-neves. Em tempos, esta ave era bem conhecida nas serras do Norte, onde terá sido abundante no século XIX, segundo o livro Aves de Portugal – Ornitologia do território continental.

“Este é um registo muito interessante, dado que a charrela era uma espécie abundante no século XIX, nas terras altas do Norte, escassa na primeira metade do século XX e ausente depois disso”, contou à Wilder Paulo Catry, investigador principal do MARE – Centro de Ciências do Mar e do Ambiente do ISPA.

Paulo Catry estudou a charrela em Portugal, procurando os poucos registos e trabalhos antigos para compreender a sua história entre nós. “Este é um exemplo interessante de como as coisas podem mudar, de como uma espécie com uma distribuição ampla, e até de aproveitamento cinegético, pode desaparecer em apenas algumas décadas”, salientou.

 

 

Para Gonçalo Elias, responsável pelo portal Aves de Portugal, estas imagens são um “registo fantástico”. “A importância desta observação é mostrar que a charrela pode ocorrer em território português nos dias de hoje, ainda que ocasionalmente”, comentou à Wilder. “Que eu saiba, é o primeiro registo em Portugal de uma imagem de animais vivos e permite documentar em vídeo a presença desta espécie no país.”

Segundo Gonçalo Elias, nos últimos 30 a 40 anos, “os registos de charrela têm sido muito esporádicos e não temos a certeza da correcta identificação em alguns casos”.

As razões do desaparecimento desta ave em Portugal não estão claramente determinadas. Paulo Catry arrisca que estejam associadas “a alterações do uso do solo na montanha – como o abandono de pastagens e de cultivo de cereais e expansão de florestações importantes -, ao incremento da pressão cinegética e, possivelmente, às alterações climáticas”.

Um regresso da espécie a Portugal?

Actualmente, estima-se que existam charrelas na Europa e em algumas partes da Ásia, com uma população mundial de entre um milhão e trezentos a dois milhões e seiscentos casais. Segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), o território desta espécie “é extremamente vasto” e, por isso, está classificada com estatuto de conservação Pouco Preocupante.

Ainda assim, as populações de charrela estão, lentamente, a entrar em declínio um pouco por toda a parte, devido à perda de habitat, à degradação do mesmo por causa da intensificação da agricultura e à perda dos insectos dos quais se alimenta, por causa dos pesticidas. Na Europa, a ave registou um declínio de 25% em pouco mais de uma década, segundo a federação Birdlife International.

Nos últimos 100 anos, a espécie regrediu em todos os 31 países onde ocorre. No Reino Unido a população diminuiu 80%. Em Portugal foi mais longe e é dada hoje como “possivelmente extinta”, segundo a Lista Vermelha da UICN.

Mas será que o aparecimento deste bando de charrelas na região de Bragança significa uma “não extinção”? Paulo Catry e Gonçalo Elias são cautelosos.

De acordo com Gonçalo Elias, o que este vídeo diz é que “a charrela pode aparecer em Portugal, pelo menos ocasionalmente”. Mas “não podemos dizer que exista um aumento da frequência da espécie no país.”

Este especialista admite que as charrelas possam ter vindo da região de Sanabria, em Espanha. “Naqueles dias caiu um grande nevão e as aves terão descido para fugir das condições mais adversas da Sanabria e chegado a Portugal para procurar alimento.”

O Atlas de Aves espanhol indica que a região de Sanabria, perto da fronteira com Portugal, está entre as serras daquele país onde há populações de charrela. Ainda assim, nas últimas décadas, a tendência das populações espanholas tem sido de “forte regressão, com processos de fragmentação e extinção nas áreas com menores densidades, correspondentes a zonas de distribuição periférica de menor altitude”. De momento, as zonas centrais dos Pirinéus e da Cordilheira Cantábrica “mantêm populações fortes e estáveis, ainda que cada vez mais fragmentadas”.

“A charrela é uma espécie emblemática de ecossistemas de montanha na Península Ibérica, de sítios selvagens e de grande beleza”, disse Paulo Catry. Além disso, “as espécies que se tornaram raras ao ponto de desaparecerem são sempre motivo de um fascínio ligado à raridade e ao mundo em mudança. Mas não devemos pensar que se trata necessariamente de um regresso”, acautelou. “As charrelas subsistem perto da fronteira portuguesa naquela região e é natural que, de vez em quando, algumas se aventurem do lado de cá.”

Só com monitorização e recolha de dados no terreno será possível descobrir se a charrela é um visitante regular em Portugal ou se este foi um encontro único numa vida.

 

[divider type=”thick”]Saiba mais sobre a charrela ou perdiz-cinzenta.

A charrela (Perdix perdix) mede entre 28 e 32 centímetros, sendo mais pequena do que a perdiz-comum (Alectoris rufa), espécie residente comum em Portugal, com os seus entre 32 e 35 centímetros.

Alimenta-se de ervas, sementes, rebentos e insectos, especialmente durante a época de reprodução, que ocorre entre Abril e Setembro. Esta espécie tem apenas uma ninhada por ano, mas em cada uma pode ter até 16 ovos.

Ouça aqui uma charrela (Xeno-canto, som captado por Luis Garcia em Abril de 2015 em Aragão, Espanha):

 

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.