Lagoa temporária em Mirouço, Vila do Bispo. Foto: Vanda Oliveira Rita
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Há vida preciosa nos charcos temporários da Costa Sudoeste

Começam a ganhar água quando chegam as primeiras chuvas de Outono, mas essa fase inverte-se ao longo da Primavera, até secarem completamente no Verão. É este o ciclo de vida dos 106 charcos temporários mediterrânicos referenciados para a Costa Sudoeste, em Portugal.

 

O facto de alternarem sempre entre uma fase inundada e uma fase seca tornou-os o habitat preferencial de algumas espécies que adaptaram o seu ciclo de vida a estas condições de vida “tão extremas”, descreve Rita Alcazar, bióloga e coordenadora da Liga para a Protecção da Natureza (LPN) em Castro Verde.

Rita Alcazar é também responsável pela supervisão geral do projecto LIFE Charcos (Julho de 2013 a Dezembro de 2017), coordenado pela LPN, que conta ainda como parceiros com a Universidade de Évora, a Universidade do Algarve, a Câmara Municipal de Odemira e o Grupo de Beneficiários do Mira.

O objectivo do projecto é reverter o declínio e ajudar à conservação deste habitat característico de climas com Invernos chuvosos e Verões quentes e secos, e que se pode encontrar também noutras regiões do  mundo e do país, em especial a Sul.

No entanto, é na Costa Sudoeste que estes charcos temporários se concentram em grande número e onde alguns ainda apresentam “um excelente estado de conservação”. Mais concretamente, no concelho de Odemira encontram-se 70% dos charcos abrangidos pelo projecto, em especial nas áreas de Vila Nova de Milfontes, Longueira e Almograve. Vila do Bispo, ali a poucos quilómetros, alberga quase todos os restantes, e outros dois pertencem ao concelho de Aljezur.

E apesar de variarem muito quanto à dimensão – entre 50 metros quadrados e 7,3 hectares (73.000 metros quadrados, ou mais do que a área ocupada por sete campos de futebol) – todos estes charcos têm uma grande importância para a biodiversidade.

Ali, esta é “muito elevada e geralmente superior à que se pode encontrar em outros meios aquáticos como, por exemplo, lagoas permanentes, barragens ou cursos de água”, sublinha a bióloga.

 

Mirouço, Vila do Bispo. Foto: LPN
Mirouço, Vila do Bispo. Foto: LPN

 

Para sobreviverem em “condições tão extremas”, tanto os animais como as plantas tiveram de adaptar os seus ciclos de vida à alternância entre inundações no Inverno e fases secas no Verão. “Muitas das espécies que albergam são consideradas raras e ameaçadas, quer a nível europeu, quer a nível global.”

Rita Alcazar chama a atenção para as plantas ali presentes, muitas das quais só conseguem sobreviver em associação com outras espécies – e por isso não ocorrem noutros habitats isoladamente -, e ainda graças a um banco de sementes “denso e diverso”, presente no solo.

Na fauna, o destaque vai para os crustáceos grandes branqueópodes, cujo nome significa “branquias nos pés”. “Nestas espécies, os cistos (ovos ou embriões resistentes) têm que passar por uma fase de secura para depois eclodirem assim que os charcos começam de novo a encher. De facto, estes cistos podem manter-se viáveis durante vários anos se houver períodos de seca prolongada”, explica a bióloga, que compara esta fase de vida latente com o comportamento das sementes.

A sobrevivência destes crustáceos é aliás uma das razões apontadas para a necessidade de conservar os charcos temporários, único local onde ocorrem estas espécies. No Sudoeste, nos charcos temporários, podem encontrar-se seis espécies deste grupo – incluindo algumas que ocorrem apenas nesta região, como o Triops vicentinus.

 

Triops vicentinus. Foto: Elisabete Rodrigues
Triops vicentinus. Foto: Elisabete Rodrigues

 

“Esta espécie, endémica do sudoeste de Portugal pertence ao género Triops que se tem mantido nestes ecossistemas temporários desde antes do Jurássico (compreendido entre 199 milhões e 145 milhões de anos atrás, aproximadamente), a era dos grandes dinossauros.”

Já o grupo dos camarões-fada (Ordem Anostraca), que inclui para a Costa Sudoeste três das sete espécies referenciadas para Portugal (Branchipus cortesi, Chirocephalus diaphanus e Tanymastix stagnalis), apresenta uma característica “muito interessante”: têm ciclos de vida muito rápidos, isto é, desde que eclodem dos ovos, passando pela fase de crescimento, fase adulta e fase de reprodução, podem decorrer apenas 8 ou 15 dias.

“São, de facto, ‘super-rápidos’”, nota a mesma responsável. “Adaptaram-se assim a ecossistemas efémeros, como se estivessem a aproveitar a água enquanto ela existe.”

Mas por ali também se podem observar várias espécies de anfíbios, para os quais os charcos temporários assumem grande importância durante a época de reprodução.

 

Foto: LPN
Sapinho-de-verrugas-verdes, um dos habitantes dos charcos temporários da Costa Sudoeste. Foto: LPN

 

É possível encontrar ainda várias espécies de mamíferos, incluindo o rato de Cabrera e alguns morcegos, como o morcego-negro (Barbastella Barbastellus), o morcego-orelhudo-castanho (Plecotus auritus) e o morcego-orelhudo-cinzento (Plecotus austriacus).

 

Há futuro para estes charcos?

 

Ninguém conhece a resposta. Os charcos temporários mediterrânicos estão classificados como prioridade I pelas Directiva Habitats, da União Europeia. De facto, são muito vulneráveis a algumas actividades humanas e por isso muitos já desapareceram ou enfrentam actualmente esse risco, não só em Portugal como noutras regiões do mundo.

Na Costa Sudoeste, por exemplo, o desconhecimento sentido pelas populações locais e a introdução de novas práticas agrícolas, como acções de drenagem ou terraplanagem, ou ainda o sobrepastoreio, são ameaças identificadas pelo projecto coordenado pela LPN.

Daí que a realização de acções de educação e sensibilização ambiental com as escolas da região e com a população em geral seja uma das principais apostas da equipa, tal como a realização de acções de recuperação e de manutenção de alguns charcos, “de carácter demonstrativo”.

Entre os trabalhos já realizados pelo projecto, contam-se também a identificação de todos os charcos temporários na região e o levantamento das espécies que ali ocorrem, o que incluiu a referenciação de centenas de referências bibliográficas e a monitorização pela equipa, ao longo do ano inteiro.

Para já, está a ser também preparado um manual de boas práticas, que descreve por exemplo quais devem ser os cuidados a ter na agricultura e no pastoreio, por exemplo.

E além das visitas guiadas que se vão realizando a alguns dos locais estudados pelo projecto, abertas a todos os interessados, está previsto “tornar acessível à visitação um charco temporário no concelho de Odemira”, anuncia Rita Alcazar. Assim, a vida preciosa que ocorre nestes habitats vai passar a estar menos escondida.

 

Vale Santo, nas imediações do Cabo de São Vicente. Foto: LPN
Vale Santo, nas imediações do Cabo de São Vicente. Foto: LPN

 

[divider type=”thin”]Agora é a sua vez.

No site do LIFE Charcos, pode ficar a conhecer melhor este habitat e todo o projecto. E se ficou curioso sobre as espécies características, neste artigo da Wilder pode espreitar nove das muitas espécies que ali sobrevivem.

Rita Alcazar descreve ainda quais os cuidados a ter, se deparar ou se for proprietário de uma área com um charco temporário:

“Enquanto visitante é importante que evite a circulação com viaturas na área do charco temporário e que não efetue recolhas de animais e plantas (pode sempre desfrutar da sua visualização no campo ou trazer fotografias como recordação!), mas no fundo aplicam-se aqui as boas regras de conduta de um visitante numa área natural. Também é importante que não sejam libertadas espécies nestes habitats naturais.

A manutenção e conservação dos charcos temporários depende essencialmente de boas práticas agrícolas e florestais, pelo que não se deve efetuar mobilizações do solo, a sua drenagem ou o abastecimento artificial de água que podem destruir de forma irreversível este habitat. O pastoreio extensivo durante o verão é uma boa prática compatível com o bom estado de conservação dos charcos temporários.

Será também aconselhável que comunique a sua localização ao Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas ou a alguma organização ambiental ou científica.”

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.