Um dos cavalos-marinhos agora libertados na Ria Formosa. Foto: João Rodrigues Chimera Visuals

Libertados 60 cavalos-marinhos para ajudarem a repovoar a Ria Formosa, no Algarve

Coordenada pelo CCMAR, um centro de investigação ligado à Universidade do Algarve, esta libertação pretende ajudar as populações de cavalos-marinhos a recuperarem de uma enorme quebra estimada nos últimos 20 anos. A Wilder falou com os responsáveis e conta-lhe tudo sobre este projecto.

Há 20 anos esta foi anunciada por uma investigadora canadiana, Janelle Curtis, como a maior comunidade mundial de cavalos-marinhos do mundo. E terá sido essa fama o gatilho para o declínio que se seguiu: os cavalos-marinhos da Ria Formosa, até ali ignorados, passaram a ser alvo de pesca ilegal para serem vendidos em mercados de medicina tradicional na China e noutros países asiáticos.

Esta procura desenfreada, juntamente com a degradação do seu habitat natural, levou a que a população destes peixes na Ria Formosa tenha sofrido uma quebra estimada em 96% até aos dias de hoje. “Tem havido muitos altos e baixos, mas presentemente os cavalos-marinhos estão numa fase muito má e há o risco de se poderem extinguir localmente, se nada for feito”, alerta Rui Santos, investigador do CCMAR – Centro de Ciências do Mar e professor na Universidade do Algarve.

Em causa estão as duas espécies que habitam a ria situada no Barlavento algarvio: o cavalo-marinho-de-focinho-curto (Hippocampus hippocampus) e o cavalo-marinho-de-focinho-longo (Hippocampus guttulatus).

Libertação dos cavalos-marinhos na Ria Formosa. Foto: CCMAR

A fim de travar essa descida, uma equipa de mergulhadores libertou na última terça-feira, 16 de Novembro, 60 cavalos-marinhos a cerca de uma milha de distância (cerca de 1,6 quilómetros) do cais comercial de Faro. Destes pequenos peixes ósseos, 50 tinham sido criados em cativeiro na Estação Marinha do Ramalhete, em Faro, e outros 10 eram os progenitores agora devolvidos à natureza.

Os 60 cavalos-marinhos foram libertados por mergulhadores no fundo da Ria, numa das duas zonas de santuário criadas em Março passado para esta espécie, onde passou a ser proibida a navegação, o mergulho e a pesca. Tinham à sua espera algumas estruturas artificiais ali colocadas, que vão substituir as ervas marinhas enquanto aquelas ganham altura suficiente para cumprirem o seu papel.

Mergulhador a libertar cavalos-marinhos numa das duas zonas de santuário da Ria Formosa. Foto: João Rodrigues Chimera Visuals

Grades e cordas de sisal

“Estas estruturas são umas grades que têm agarradas umas cordas de sisal, um material biodegradável, e cada uma dessas cordas tem um pequeno flutuador para ficar mais direita. Os cavalos-marinhos agarram-se a estas cordas com a ajuda das caudas”, descreveu à Wilder Rui Santos, contente com o resultado: “Quando os libertámos, foram logo agarrar-se.”

A acção de libertação faz parte do projecto Seaghorse, coordenado pelo CCMAR e financiado pela Fundação Belmiro de Azevedo. Iniciado há seis meses, prevê-se que o Seaghorse se prolongue por mais um ano e meio, e envolve também as autoridades marítimas, o Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), o Parque Natural da Ria Formosa e a Agência Portuguesa do Ambiente (APA).

Além do repovoamento da Ria Formosa pelas duas espécies de cavalos-marinhos, a equipa está a trabalhar na recuperação do habitat natural da espécie, as pradarias marinhas, nas quais plantas como a Zoostera marina têm um papel importante.

Pradarias marinhas da Ria Formosa. Foto: Rui Santos

Mas não só. Em estudo está a biologia destes pequenos peixes ósseos e a investigação sobre os seus principais alimentos, constituídos por minúsculos crustáceos. “Não sabemos se haverá algum problema relacionado com falta de comida”, indica Rui Santos, que é também o coordenador do Seaghorse.

Os investigadores estão a avaliar os efeitos da invasão da Ria Formosa pela alga verde exótica Caulerpa prolifera, que ali chegou em 2015. “Este último ano foi dramático”, comenta Rui Santos. Um dos problemas desta espécie invasora é que diminui fortemente a quantidade de pequenos crustáceos – como o Apseudopsis formosus – que são o principal alimento dos cavalos-marinhos. “Estes crustáceos não se encontram na Caulerpa, apesar de serem muito abundantes nas ervas marinhas, e por isso é possível que haja um impacto na alimentação.”

O projecto Seaghorse inclui ainda acções de formação sobre a importância das pradarias marinhas para a Ria Formosa, dadas a professores dos ensinos básico e secundário ali da região, e também formação dada a grupos de interesse (‘stakeholders’), incluindo pescadores, jornalistas, políticos, técnicos, empresas marítimo-turísticas, entre outros.

Cavalos-marinhos fotografados, um a um

Quanto ao futuro dos novos habitantes da Ria, vão ser alvo de uma monitorização regular num percurso pré-estabelecido – chamado de transecto – dentro da zona onde foram libertados. A ideia é comparar os resultados com a presença de cavalos-marinhos noutras zonas: além das pradarias marinhas, também serão vigiados fundos arenosos sem vegetação e ambientes onde a alga Caulerpa é agora dominante.

Uma ajuda importante para perceberem como está a correr a adaptação vão ser as fotografias tiradas a cada um dos 60 cavalos-marinhos – explica por seu turno Jorge Palma, investigador no CCMAR – pois permitem identificá-los. “Todos foram fotografados sobre o lado esquerdo da cabeça antes de serem libertados, pois têm características individuais: os cavalos-marinhos-de-focinho-comprido têm padrões diferentes de pintinhas e riscas – não há dois padrões iguais – e os de focinho-curto têm uma espécie de coroa no topo da cabeça que é bastante diferente de animal para animal.”

Cavalo-marinho-de-focinho-comprido (Hippocampus guttulatus) fotografado na Ria Formosa. Foto: Jorge Palma
Cavalos-marinhos-de-focinho-curto (Hippocampus hippocampus) criados em cativeiro na Estação do Ramalhete, em Faro. Foto: Jorge Palma

Jorge Palma, que trabalha com a criação destas espécies em cativeiro há mais de uma década, considera que esta foi a melhor altura para a libertação, pois a grande maioria “tem entre sete meses a um ano de idade”. Ou seja, são jovens adultos com maturidade suficiente para se reproduzirem. E além disso, são descendentes de animais que já viviam na Ria, pelo que partilham o mesmo património genético.

Quanto ao local escolhido, acrescenta que é o mais indicado. “Uma reintrodução deve ser feita quando os factores negativos cessam, como acontece na zona protegida [área de santuário]. Estes animais têm uma grande fiabilidade ao habitat e se gostarem do local e não forem perturbados, não andam mais do que 100 metros.”

Cavalo-marinho em meio selvagem, na Ria Formosa. Foto: Jorge Palma

Único local de criação em cativeiro

O investigador salienta que a Estação Marinha do Ramalhete, em Faro, é hoje o único local do mundo onde são criados em cativeiro tanto os cavalos-marinhos-de-focinho-curto como os cavalos-marinhos-de-focinho-comprido. Até porque é necessário um grande esforço nos primeiros meses de vida – logo quando deixam a bolsa do progenitor macho onde estavam protegidos, todos eles pequeninas cópias dos seus antecessores.

Todos os dias, por exemplo, é necessário apanhar alimento vivo para que os jovens cavalos-marinhos cacem e se alimentem, pois recusam-se a comer ração. E apesar da aparência frágil, a verdade é que esse peixes precisam de uma grande quantidade de comida: “São predadores bastante eficazes, que aos três meses de idade já consomem o equivalente a 10% do seu peso.” A tarefa é facilitada porque a estação está junto à Ria Formosa e consegue produzir os alimentos de que dependem estes animais em dois reservatórios, explica Jorge Palma.

Tanques de criação em cativeiro dos cavalos-marinhos. Foto: CCMAR

Entretanto, se tudo correr bem, a equipa continuará a ter muito trabalho com a criação em cativeiro durante os próximos meses. Jorge Palma e Rui Santos esperam que seja possível a libertação de um novo grupo de cavalos-marinhos no próximo ano, num novo esforço para ajudar a biodiversidade da Ria Formosa e para impedir que dali desapareça este peixe tão especial.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.