Foto: Filip Maljković/Wiki Commons
/

Crónicas naturais: A era das galinhas

“Os ossos das galinhas (mais o plástico e o betão) são e serão a marca inconfundível da emergência do Antropoceno, o nosso tempo”, escreve o biólogo Paulo Catry a propósito da gigantesca biomassa destas aves que povoam o mundo e do Dia Mundial do Animal, que se comemorou a 4 de Outubro.

 

04 Outubro 2022

Ao dia de hoje há uns 25 mil milhões de galinhas vivas na Terra. A biomassa das galinhas do mundo é três vezes superior à de todas as aves selvagens existentes. Ao contrário das pessoas, também numerosas, cada uma destas galinhas brancas e deslavadas não vive muito (em geral, 5 a 7 semanas apenas se for para produção de carne, ou 1 ano se for poedeira), sendo rapidamente substituída.

Galinhas numa criação de aviário, em 2017. Foto: LP12/Wiki Commons

Uma enorme percentagem vive, ou vegeta, em aviários sobrelotados. Stress controlado apenas quanto baste para permitir o crescimento e a produção a níveis economicamente vantajosos. As produtoras de carne estão tão alimentadas e geneticamente modificadas (5 vezes mais pesadas do que era habitual) que se não forem sacrificadas, começam a morrer por si aos 2 ou 3 meses de idade*.

Um bom número de galinhas bonitas vive ainda vidas curtas mas preenchidas, nas tabancas, sanzalas e comunidades rurais de toda a sorte em países do além-mar. Há uns restos que vivem em aldeias, quintas e quintais da Europa e de outros mundos ditos mais desenvolvidos. Há ainda galinhas selvagens multicolores, muito perseguidas mas esquivas, sobrevivendo por ora nas soçobrantes florestas do sudeste asiático, nalgumas zonas adaptando-se também a habitats algo degradados e humanizados.

Galinhas soltas numa povoação da ilha de Santiago, Cabo Verde. Foto: Paulo Catry

As mudanças dos tempos geológicos (Pérmico, Triássico, etc) são definidas pelas formas de vida que se tornam abundantes ao ponto de deixarem uma marca indelével nos estratos de rocha de uma certa idade. Nas transições entre eras muitas vezes desaparecem formas dominantes (como o foram, por exemplo, as trilobites ou as amonites), surgindo então outras que as substituem. Os ossos das galinhas (mais o plástico e o betão) são e serão a marca inconfundível da emergência do Antropoceno, o nosso tempo (tempo que não se sabe ainda quanto durará, nem quanto dele chegará a ser rocha um dia).

A mim não me desagrada ser do planeta gente, sobretudo se puder viver do lado da aldeia. O que me custa é viver no planeta “só gente”. No planeta da excecionalidade humana, em que tudo o resto é tão secundário ao ponto de ser irrelevante (bem sei, o padrão é camuflado por uma ou outra cosmética). Não foi sempre assim. Hoje, contudo, interessam humanos e os animais de dentro de casa (ah! e ainda, mas com outro critério, os que entram na cozinha – como as galinhas).

Galinha selvagem Gallus gallus do sudeste asiático, espécie que deu origem às galinhas domésticas. Foto: Francesco Veronesi/Wiki Commons

Todas as instituições, os Estados, os empreendimentos, os poemas, os tratados. Esta crónica. Até a conservação da natureza, no mais generalizado dos consensos, é para a gente. Milhões de espécies, todas as montanhas e os seus regatos, o fundo do mar e tudo o resto onde pudermos chegar (as estrelas não contam – demasiado distantes) são nada perante o nosso ser e querer. Nem os deuses puderam resistir, sobreviveram uns poucos que com dificuldade se assemelharam.

Nenhuma ideia na história da humanidade se revelou tão influente, tão esmagadora: “nós é que somos”. Os grandes, os poderosos, as massas, até os espoliados são nossos (ao menos nalguns dias). Nós, o nosso brilho e o nosso sofrimento. Nós e os nossos frangos, feitos rolo compressor da Terra exangue.

As trilobites, que conhecemos pelo registo fóssil em rochas com mais de 250 milhões de anos, eram artrópodes marinhos cuja extinção assinala o final do Paleozoico. Foto: Kevmin/Wiki Commons

O irónico e admirável nisto é que, claro está, a vida vai resistir-nos, ultrapassar-nos e continuar a proliferar como o faz desde a sua origem, mas essa crónica fica (talvez) para outro dia.

Entretanto, com a modernização e o êxodo rural são cada vez mais as aldeias sem galo-do-campo. Nada de garnisés coloridos e ruidosos a anteciparem a alvorada. Nada de pintainhos saltitantes pela rua empedrada. Só frango-da-arca, congelado, ou já churrasco de crescer água na boca. Aproveite-se e venha o tinto a acompanhar, bebamos à memória das pedreses que valiam por três. Quem diria? De bucho cheio de frango** a acariciar a memória daquelas outras galinhas, lindas.

 

* Bennett CE et al 2018. R Soc. open s. 5: 180325.
** Apesar do número crescente de vegetarianos pelo mundo, o consumo global de carne de galinha e de outros animais domésticos continua a aumentar a grande velocidade.

 


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.