Solta de Nara no Vale do Guadiana, em Maio de 2017. Foto: Helena Geraldes

Como se liberta um lince-ibérico na natureza

A libertação de um lince-ibérico na natureza acontece em poucos segundos. Quando a caixa transportadora se abriu ontem à tarde no Vale do Guadiana, Nara correu para a liberdade e desapareceu entre a vegetação. Tão depressa que parece nem ter acontecido. Mas aconteceu e a Wilder esteve lá para lhe contar como foi.

 

Pouco falta para as 16h00 e dezenas de pessoas sobem para carrinhas de caixa-aberta disponibilizadas pela Junta de Freguesia de São João dos Caldeireiros (Mértola). Todos os chapéus, lenços e guarda-sois são poucos para escapar do Sol abrasador do Alentejo.

 

 

Da estrada municipal até ao ponto onde Nara será libertada são cerca de dois quilómetros. A viagem segue por um trilho de terra batida que se adensa pela Herdade das Romeiras. Uns seguram nas mãos câmaras fotográficas, há quem traga já os binóculos ao pescoço. Outros semicerram os olhos por causa do pó que se levanta do chão.

 

 

No local da solta, não há árvore que dê sombra. As cerca de 50 pessoas, adultos e crianças, vão-se espalhando pelos sítios mais elevados, para conseguir ver melhor.

 

 

Num compasso de espera montam-se tripés de câmaras, tiram-se fotografias à paisagem de linces. É um terreno ondulante onde vivem inúmeras espécies – como gamos, coelhos-bravos e aves de rapina -, pintalgado de giestas, alcachofras e pequenas oliveiras, tão diferente das estepes cerealíferas acastanhadas ali muito próximas. Umas centenas de metros à frente, alguns choupos assinalam as margens da ribeira de Odivelas, onde os felinos talvez matem a sede.

Está tudo pronto. Nara será a última a chegar, vinda de Espanha. Alguém diz que já está bem perto.

E a pequena multidão resiste e não arreda pé, nem mesmo as crianças. Nesta solta pública estão a secretária de Estado do Ordenamento do Território e da Conservação da Natureza, Célia Ramos, responsáveis do ICNF, autarcas, vigilantes da natureza e SEPNA (Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente da GNR).

Alinham-se nas elevações do terreno e aguardam. Não é todos os dias que se pode ver um lince-ibérico. Esta é uma espécie classificada Em Perigo de extinção e está no centro de um dos maiores projectos de conservação da Europa. Em 2002, este felino estava reduzido a apenas 120 animais em todo o mundo, numa área de apenas 2.000 quilómetros quadrados na Andaluzia. Desses, menos de 30 seriam fêmeas reprodutoras, um número perigosamente baixo para garantir o futuro da espécie. Nara, que deverá chegar a qualquer momento, é fruto de um esforço para recuperar a distribuição histórica de uma espécie que se estima viver na Península Ibérica há, pelo menos, 27.000 anos.

E discretamente, uma carrinha cinzenta escura estaciona ali perto.

 

 

Saem quatro pessoas, que abrem a porta de trás, deixando ver uma caixa transportadora coberta por uma lona cinzenta. Nara acabou de chegar.

 

 

É o oitavo e último lince libertado este ano em Portugal, no âmbito do projecto Iberlince, depois de Niassa, Naira, Neves, Nerium, Noudar, Noctulo e Neco (que foi encontrado atropelado na semana passada). Vem para reforçar o núcleo populacional que está a ser criado desde Dezembro de 2014 no Parque Natural do Vale do Guadiana. E a população mundial da espécie que, em 2016, era de 483 animais.

O burburinho acalma e faz-se silêncio. A caixa de transporte é cuidadosamente retirada do veículo e levada para o local da solta por duas técnicas do Centro de Reprodução em cativeiro de El Acebuche, onde Nara nasceu em Março do ano passado, e por dois técnicos das equipas portuguesas que fazem o seguimento dos linces no Vale do Guadiana.

 

 

A caixa é pousada no chão. Na parte inferior que a lona não esconde, vêem-se quatro patas de felino, por instantes um focinho e bigodes. Passam poucos segundos e a porta da caixa é aberta. Nara não hesita nem se atrapalha, quase como se soubesse perfeitamente o que veio ali fazer. Sai em frente, rápida, pelo terreno abaixo, levando ao pescoço uma coleira de um azul vivo, para poder ser seguida pelas equipas técnicas.

 

 

 

 

 

 

 

Pouco depois abranda ligeiramente, vira à direita e desaparece entre a vegetação.

A multidão volta às carrinhas que serviram de transporte desde o ponto de encontro. “Há por aqui mais linces?”, pergunta uma menina ao pai.

 

Nasceram 10 crias no Vale do Guadiana

 

A Herdade das Romeiras tem sido o ponto de partida para as reintroduções de linces em Portugal. Vários linces fixaram-se naquela região, outros deslocaram-se um pouco para mais longe à procura do seu território.

Actualmente, o núcleo populacional de linces em Portugal rondará os 30 animais. Momentos antes da libertação de Nara, Pedro Sarmento, um dos dois biólogos do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) que faz o seguimento no terreno destes felinos, explicou que já foram reintroduzidos no Vale do Guadiana um total de 27 linces, desde 16 de Dezembro de 2014. Destes, três animais morreram (por causa de doença, por envenenamento e por atropelamento) e cinco estão desaparecidos. Depois há que acrescentar as cinco crias que nasceram na natureza na Primavera de 2016, e que continuam todas no Vale do Guadiana (Navarro, Neblina, Nógado, Nossa e Nuvem), e as dez que nasceram já este ano.

Neste núcleo, há 12 linces adultos: Jacarandá, Lagunilla, Liberdade, Lluvia, Macela, Mel, Katmandú, Luso, Lítio, Kempo, Loro e Monfrague. As fêmeas que foram mães este ano são Mirandilla (com Luso), Lagunilla (com Luso), Jacarandá (com Katmandú), Lluvia (com Katmandú) e Malva (com Mundo). Mas as equipas no terreno ainda não terminaram de confirmar as ninhadas do Vale do Guadiana.

 

 

Os animais de Mértola representam já 22% do total deste núcleo. “Estamos a caminhar para a independência dos centros de reprodução”, de onde vêem actualmente a maioria dos animais para reforçar as populações na natureza. Desde 2009 a 2017, o projecto Iberlince já libertou na natureza 210 linces. Alguns foram animais capturados no campo mas a grande maioria veio dos centros de reprodução em cativeiro de Silves, El Acebuche, La Olivilla, Granadilla e Zoobotânico de Jerez.

Como é o caso de Nara. Esta fêmea nasceu em El Acebuche, em cativeiro, e desde cedo foi preparada para a liberdade. Para estes linces, o contacto com humanos é reduzido ao mínimo, contou à Wilder Francisco Villaespesa, 33 anos, o director dos centros de reprodução de lince-ibérico do Organismo Autónomo de Parques Nacionais de Espanha. Francisco foi uma das pessoas que trouxeram Nara desde El Acebuche até à Herdade das Romeiras, na carrinha cinzento escura.

Foram duas horas e meia de caminho, até chegarem à Herdade, explicou. “Tentámos que Nara viesse o mais tranquila possível, bem refrigerada.”

 

 

Ainda assim, chegou a estar “um pouco nervosa”. “Tentava agarrar e morder a lona que cobria a caixa e tivemos de parar uma vez”. Mas conseguiram acalmá-la. Depois, reduziram a velocidade e fizeram as curvas bem devagar.

Esta foi a primeira vez que Francisco Villaespesa viu Nara, que nasceu em Março do ano passado e que hoje pesa 9,8 quilos. Como acontece com todos os linces reproduzidos em cativeiro, destinados à natureza, o contacto com humanos é reduzido ao mínimo possível. O objectivo é que mantenham todos os seus instintos selvagens e que evitem seres humanos.

Mas Pedro Sarmento e Carlos Carrapato, biólogos do ICNF, fazem tudo para os encontrar. Ambos fazem parte das equipas que seguem e monitorizam os linces que vivem no Vale do Guadiana.

Segundo Pedro Sarmento, os linces ocupam actualmente uma área estimada em 175 quilómetros quadrados, com uma densidade de 6,8 linces adultos por 100 quilómetros quadrados. Esta é considerada uma densidade “muito alta”, o que também prova a alta densidade de coelho-bravo, uma das presas do lince. Em média, cada macho tem um território que ronda os 10 quilómetros quadrados, acrescentou.

O director do Departamento de Conservação da Natureza e Florestas do Alentejo (ICNF), Pedro Rocha, explicou ontem que este projecto de conservação só é possível graças aos contratos estabelecidos com os gestores e proprietários da região, num total de 20.000 hectares destinada ao regresso do lince.

Agora espera-se que Nara ocupe um cantinho dessa área.

 

[divider type=”thick”]Saiba mais.

Três ilustradores naturalistas portugueses estiveram na solta de Nara. Saiba porquê aqui.

Saiba como é cuidar dos linces no Vale do Guadiana.

Leia a nossa série “Como nasce um lince-ibérico” e conheça os veterinários, video-vigilantes, tratadores e restante equipa do Centro Nacional de Reprodução (CNRLI) em Silves.