Floresta de Namba. Foto: © Alexandre Vaz

Entrevista: “É prioritário criar um estatuto de protecção para estas florestas de montanha”

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Martim Melo, um dos autores de uma carta de alerta sobre o futuro deste habitat único em Angola, explicou à Wilder porque é que estas florestas estão fortemente ameaçadas. E o que as torna tão valiosas.

WILDER: Há quantos milhões de anos surgiram estas florestas de montanha?

Martim Melo: Datar a origem exacta de um habitat é difícil. No caso destas florestas, umas florestas húmidas temperadas, e os prados de altitude que as circundam, a investigação tem-se focado no período dos últimos três milhões de anos – em parte porque é o período onde tiveram lugar os ciclos de glaciações no Hemisfério Norte, que levaram a alterações cíclicas dos habitats no Hemisfério Sul, e em parte porque as análises palinológicas (estudo de colunas de sedimentos contendo pólen) não vão muito mais longe. 

Estas florestas, que hoje designamos como sendo ‘de montanha’, expandiam-se durante os períodos glaciares, por intervalos de tempo que podiam durar até cerca de 90.000 anos. Os padrões de expansão e contração destas florestas e prados iam geralmente na direcção oposta aos padrões das florestas tropicais da planície – as condições favoráveis a umas eram, em geral, desfavoráveis às outras . No entanto, o que hoje chamamos florestas de montanha foi sempre um habitat particularmente sensível às alterações climáticas.

Floresta de Namba. Foto: © KD Dijkstra

W: Nas duas expedições a Namba em que o Martim participou, o que mais o impressionou e à restante equipa?

Martim Melo: Desde 2008 que trabalhava nas florestas de montanha do Morro do Moco, o ponto mais alto de Angola, com o Michael Mills. Na altura julgava-se que aqui se encontrava o último reduto deste habitat em Angola (para além de uns pequenos fragmentos na Serra da Tundavala, perto do Lubango, e possivelmente noutros picos por explorar).

A melhor área de floresta de montanha em Angola era constituída por fragmentos muito pequenos e degradados – a maior parte entre 1 e 2 hectares, o maior com 11 hectares – cuja pequena dimensão os tornava particularmente vulneráveis. De qualquer maneira, mesmo aí, era impressionante constatar que dentro destas micro-ilhas ainda se encontravam as espécies de aves, o grupo que estudávamos, que dependem deste habitat. Como que em jangadas, isoladas por milhares de quilómetros das populações mais próximas. No entanto, várias espécies que sabíamos terem existido aqui já não estavam presentes.

Pedaço de floresta de montanha no Morro do Moco. Foto: © Alexandre Vaz

Em 2010, fomos explorar a Serra de Namba. Registos históricos indicavam que aí existia floresta de montanha e imagens do Google Earth mostravam que manchas de floresta ainda estavam presentes. A questão era saber se se tratavam de florestas de montanha ou de outra formação, como os bosques de miombo, muito comuns em Angola e que podem ocorrer em altitudes elevadas.

O que nos impressionou imediatamente foi a enorme extensão da floresta e o grande tamanho dos fragmentos – sobretudo quando comparados com os do Moco. Esperávamos vir aqui encontrar no máximo uns 100 hectares de floresta e afinal existiam cerca de 600. Além disso, a qualidade da floresta também nos surpreendeu, com várias espécies de árvores extintas no Moco (devido ao abate para madeira) ainda abundantes aqui. Quanto às aves, todas as espécies dependentes deste habitat estavam aqui presentes, incluindo todas as que hoje estão extintas no Moco, encontrando-se aqui em densidades elevadas.

Trabalho de campo com montagem de redes, em Namba. Foto: © Martim Melo
Tordo-de-terra-laranja. Foto: © Luke Powell

Para lá da biodiversidade única que só um olho mais treinado vai reconhecer, o que impressiona muito em Namba – para qualquer pessoa – é a paisagem em si. Uma paisagem vasta, de um mundo perdido. De um lado as vastas planícies a perder de vista onde manchas de bosque de miombo de grande qualidade fazem um mosaico com as pradarias, e onde muitos riachos onde água transparente corre com força. Do outro a parede de montanhas – onde vamos encontrar os prados de altitude e as florestas de montanha.

É um local lindíssimo, com um potencial enorme para um turismo de natureza e de caminhadas. O potencial para constituir o que no mundo anglófono se designa como uma ‘wilderness area’ – onde não se criam infra-estruturas, ou apenas o mínimo indispensável, mas apenas se controla o número de pessoas, que devem trazer tudo o que precisam e não deixarem nada. 

Floresta de Namba. Foto: © Alexandre Vaz

W: Trata-se de uma região isolada ou o acesso a estas montanhas é fácil?

Martim Melo: Namba em si fica na região central de Angola, perto do eixo Luanda-Huambo. Assim, com bons acessos, poder-se-ia chegar de Luanda a Namba no mesmo dia. No entanto, a aproximação às montanhas em si foi complicada. Na expedição de 2010, seguimos um caminho já tapado por vegetação, que pouco depois desapareceu por completo.

Assim, para a expedição de 2022, foi primeiro efectuada uma expedição pelo Pedro Vaz Pinto e o Kerllen Costa, com o objectivo de procurar acessos e locais para montar acampamentos para uma equipa grande. Essa visita que teve lugar em Setembro de 2021 foi bem sucedida, o que permitiu avançar-se para a expedição de 2022.

Ainda assim, para percorrer os últimos 35 quilómetros, de carro, é preciso contar com duas horas. Depois, para chegar às florestas em si, é contar com cerca de uma hora de caminhada (ou duas com carga, quando para montar acampamento junto ou dentro da floresta).

Regresso a Namba. Foto: © Luke Powell

W: Há alguma estimativa para a percentagem destes 700 hectares que já foi atingida pelos fogos?

Com uma visita em 2010 e as outras em 2021 e 2022, é difícil dizer quantos hectares das florestas de Namba foram afectados. Precisamos agora de fazer estudos com base em imagens de satélite tiradas em anos diferentes.

O que é preocupante é que nas três visitas documentámos sempre fogos a chegarem às margens das florestas e, nas duas últimas, fogos a chegarem ao interior das florestas. Isto é extremamente preocupante. Em condições normais estas florestas são “à prova de fogo”: tanto a humidade que mantêm no solo como o desenvolvimento de uma cintura de vegetação à sua volta, de espécies dificilmente inflamáveis, protege-as dos fogos que todos os anos ocorrem nos prados circundantes.

Foto em Namba. Foto: © Luke Powell

No entanto, a degradação da vegetação devido à colecta de madeira, combinada com um aumento da frequência e intensidade dos fogos – e possivelmente agravado por uma menor precipitação devido às alterações climáticas – pode permitir quebrar as defesas anti-fogo destas florestas. Se isso acontecer, a degradação destes lugares pode ocorrer muito rapidamente, pois estão adaptados para repelir o fogo, mas não para regenerar na sua presença, como é o caso dos prados. O corte de árvores é por isso uma das primeiras causas para o enfraquecimento das defesas da floresta contra o fogo.

Fogos em Namba. Foto: © KD Dijkstra

W: Quais são as principais medidas para que a situação melhore? E para as florestas do Monte do Moco, ainda existe esperança?

É prioritário criar um estatuto de protecção para estas florestas de montanha e prados de altitude. Apesar de serem os habitats mais ameaçados de Angola – 700 hectares é mesmo muito pouco – não estão abrangidos por qualquer sistema de protecção. Em princípio, isso irá mudar em breve para as florestas do Morro do Moco, pois estas sempre foram conhecidas e já tinham sido indicadas em 1974 para integrarem uma nova rede de áreas protegidas.

O mesmo deveria ser feito imediatamente para as florestas de Namba, que requerem um investimento muito menor para um retorno em conservação muito maior. Se nada for feito, muito em breve poder-se-ão encontrar num estado semelhante às florestas do Moco, cuja conservação requer não só um grande investimento financeiro, mas um esforço humano muito grande. 

Retalhos de floresta em Namba. Foto: © Alexandre Vaz
Trabalho de campo em Namba. Foto: © Patrícia Guedes

A implementação de uma área protegida e de medidas de conservação só poderá ser bem sucedida se feita em estreita interacção e colaboração com as comunidades locais. A conservação das florestas de Namba tem a sorte de poder aproveitar a experiência acumulada no Monte Moco desde 2010, quando o Michael Mills iniciou um programa de restauro das suas florestas.

Este programa conta com a participação empenhada de toda a comunidade da aldeia de Cajonde, a mais próxima das florestas. Foi criado um viveiro a partir de sementes colhidas na área a partir do qual foram plantadas centenas de árvores. Ao mesmo tempo, a comunidade mantém faixas de corta-fogos à volta dos fragmentos de floresta para as proteger das investidas demasiado frequentes de incêndios descontrolados que as impedem de regenerar.

Recentemente, aproveitando a grande experiência local no uso de fogos para limpeza das pradarias, uma equipa foi treinada para criar corta-fogos utilizando o fogo – uma técnica mais eficaz e menos trabalhosa do que abrir corta-fogos manualmente. Esta experiência foi obtida numa área que se encontra numa situação muito mais ’terminal’ do que as florestas de Namba.

W: Quanto às muitas espécies endémicas ou quase endémicas desta área, quais é que destaca? 

Dentro do grupo que estudo, as aves, destaco o tordo-da-terra-laranja como um exemplo de uma população completamente isolada em Angola, onde apenas está presente nas florestas de Namba, apesar de anteriormente estar também presente no Moco. As populações mais próximas da de Namba encontram-se a cerca de 2000 quilómetros, na República Democrática do Congo.

Mas talvez a estrela de Namba seja uma libélula nova para a ciência. Uma libélula particularmente espectacular e tão única que inicialmente os especialistas nem sabiam a que género pertencia.

Nova espécie de libélula. Foto: © Rogério Ferreira
Trabalho de campo com pequenos mamíferos. Foto: © Martim Melo

Tal como a libélula, em resultado da expedição de apenas 11 dias a Namba várias espécies novas para a ciência estão neste momento a ser descritas, incluindo anfíbios, roedores e morcegos, uma espécie de ave e eventualmente uma segunda, ambas também presente no Moco.


Saiba mais.

Leia mais aqui sobre as florestas de montanha africanas. E recorde a descoberta de uma nova espécie de mocho na ilha do Príncipe, em São Tomé e Príncipe, na qual Martim Melo participou.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.