Raposa (Vulpes vulpes). Foto: Paulo Catry
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Crónicas naturais: salta-pocinhas

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Raposas. Matreiras, bonitas, sagazes, resistentes, ousadas, cuidadosas, rápidas. O biólogo Paulo Catry encontrou uma na serra. Esta fez-lhe companhia a admirar a paisagem, sentados juntos.

Julho

Adoro raposas. Não pela matreirice pura, se bem que essa também encanta. Adoro raposas não por serem pilha-galinhas, mas porque são bonitas. E porque resistem, porque se adaptam a tudo, sagazes e versáteis. Curiosas, cuidadosas, rápidas, ousadas, estouvadas. Os únicos carnívoros de algum porte que chegam a quase todo o lado. E as rapositas novas quando saem da toca? Trôpegas, olhos de água rasa a perscrutar a primavera… 

Raposinhas nas primeiras explorações no exterior da toca em Abril. Foto: Miguel Lecoq

Quando eu era miúdo, adolescente até, ver uma raposa era o cabo dos trabalhos. Via-se, uma vez ao ano, uma cauda a desaparecer no mato denso e já era uma conquista. Davam-lhes caça por toda a parte, coitadas, arredias até ao limite. Já era adulto quando encontrei pela primeira vez um sítio onde a observação era certa, ou quase, em ocasos estivais à beira de uma lagoa alentejana. Só sons de insetos, o ar ainda espesso do longo dia e as raposas estremunhadas a chegarem-se à água. Maravilha.

Nos anos em que estive em Glasgow passei incontáveis noite de insónia em passeios pelo bairro onde vivia. Havia vivendas finas com jardins, toda a gente se deitava cedo, as luzes amarelas refletiam-se no pavimento quase sempre molhado, tudo sossegado. A altas horas, volta e meia, aparecia alguma raposita. Pautavam-se por um estranho código de honra, passavam a trote silencioso, às vezes mesmo a roçar ao meu lado, mas era mais que certo que, ainda que as chamasse, nunca olhavam. Fingiam que não viam.

O que me enche de admiração, mais que as displicentes raposas urbanas, são as comadres das serranias agrestes, onde não frutifica nada e mal se criam murganhos, quanto mais laparotos. Estevais ou piornais a perder de vista, xisto deslavado, solo quase nada, cristais de rocha esfarelada ressequida ao sol. Mas o que é que comem estas desgraçadas? Só grilos? Muitas mantêm a compostura e o pelo brilhante; e eu, até de botas, aflito das espigas bravas e dos carrapatos das luzernas que se me metem, furam tudo meias adentro, uma loucura de desconforto. Como é que as raposas aguentam?

Saltam muros altos de volta dos redis, furtam galinhas, já se sabe, mais até, podendo ser vão borregos e cabritos. Ainda há quem lhes tenha o maior azar, afirmado a tiros e armadilhas, zorras malditas! Mas os tempos mudam e elas aprendem depressa, ou arriscam. Todos já viram ou, não podendo ver, ouviram dizer. Raposas que não leram o Aquilino, saltam o ribeiro e chegam-se aos lugares, desavergonhadas entram pelas aldeias onde já não há podengos que corram com elas. 

É frequente encontrar quem acredite que são animais de criação: a culpa é dos ecologistas e dos Serviços! Trazem a bicheza em camiões (às vezes de helicóptero) e soltam-na no monte. Pois se estes bichos nem medo têm! Esta crença absurda está, aliás, bem espalhada nos campos. Pergunto-lhes se viram imagens desses locais de reprodução em massa de onde trazem os bichos… e perguntados, os pastores que restam olham-me de soslaio, céticos, rijos.

Uma visita inesperada no cabeço do Coroto. Foto: Paulo Catry

Há tempos deparei-me com uma destas raposas dos nossos dias. Acima da aldeia de Soutelo há um raro cabeço (o Coroto) que não se atinge por caminho desbravado por máquinas ou braços. Caso raro por Portugal é um pico ao qual só acede quem se dispuser a subir furando pelos urzais despenteados. Aqui vai o relato verídico do encontro tido:

Madruguei. Quase no topo do Coroto surpreendo uma águia e um veado, pasmados de ver gente. Entretenho-me a estudar a geografia que se dilata lá em baixo e a que se ergue noutra montanha em frente. Acolá, muito longe, um sítio onde tenho feito esperas aos lobos. Aqui mais perto reconheço a fraga certa dos falcões-peregrinos. O Sabor corre em silêncio lá muito encaixado no vale, recolhido na sombra dos amieiros. Visto daqui faz sede.

Subitamente, aparece companhia: bom dia comadre salta-pocinhas – ah, se ao menos as houvesse, está tudo seco! Não sei de onde saiu a raposa que mal me olha e logo finge perder o interesse, explora por aqui à volta, faz que circula. Não parece esfomeada, cheira a mochila que poisei, mas não se detém, apesar da merenda que ali trago. Depois senta-se muito perto e aprecia a paisagem, de costas para mim. Estamos por aqui um bom bocado, contemplativos.

Salta-pocinhas. Foto: Paulo Catry 

Deixei os binóculos no chão para me concentrar na máquina fotográfica. Ficamos os dois assim entretidos, ela faz poses e eu feito paparazzi fotografo. Depois, de mansinho, a comadre chega-se aos binóculos e pega neles com jeito. Não sei o que lhe deu, mas de súbito põe-se a trote pela serra, leva-os na boca e, sem compostura, vou aos tropeções atrás dela aos gritos…. Pronto, pensou ela, não vale a pena tanto alarido, deixo os binóculos já aqui! Não foi longe, apanho-os ainda inquieto e a resmungar, volto para ao pé da mochila. Devo tê-la assustado de vez.

“… a comadre chega-se aos binóculos e pega neles com jeitinho”. Foto: Paulo Catry

Qual o quê, minutos depois tenho a salta-pocinhas ao meu lado, ar zombeteiro, desta vez a olhar para mim. Depois, com um sorriso deita-se trocista: não percebeste nada, se quiseres fingimos que és o principezinho, e fecha os olhos ao sol, relaxada aos meus pés. Amigos.

Confiança. Foto: Paulo Catry

Se não visse não acreditava, mas a salta-pocinhas tem mais que fazer. Gostou do convívio e agora ala que se faz tarde, trepou pelos socalcos de rocha, embrenhou-se no mato e foi-se. 

Desço a serra a fugir ao sol que já vai alto, o xisto esboroa-se debaixo das botas apressadas, passou um tartaranhão-caçador, um dos últimos que restam por aqui. Ar ondulante, moscas irritantes, não há outro ruído. A luz de julho estatela-se na encosta e tudo esmaga. Aguentam só as urzes, cintilantes e sedentas. Na frescura dos esconderijos, as raposas estão já adormecidas. 


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.