Maçarico-de-bico-direito (subespécie Limosa limosa islandica), que inverna no Estuário do Tejo e nidifica na Islândia. Foto: Hans Hillewaert/Wiki Commons

Aeroporto do Montijo: Cientista aponta erros e lacunas graves

José Alves, da Universidade de Aveiro, levanta fortes críticas ao estudo de impacte ambiental relativo ao aeroporto do Montijo e à forma como o processo se está a desenvolver. A Wilder falou com este especialista no estudo de aves.

Desde há 15 anos que este investigador do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar da Universidade de Aveiro (UA), onde é também docente no Departamento de Biologia, estuda as aves migradoras no Estuário do Tejo e também no Árctico e África Ocidental.

Num parecer pessoal entregue à Agência Portuguesa do Ambiente (APA) durante a consulta pública relativa ao estudo de impacte ambiental (EIA), José Alves sublinha que “a avaliação dos impactes do projeto sobre a avifauna estuarina é muito deficiente e nalguns pontos errónea”.

investigador debruçado junto a um lago
José Alves a analisar um ninho de maçarico. Foto: UA

Por esse motivo, afirma, a declaração de impacte ambiental emitida pela APA deveria “inviabilizar a execução do projecto em causa” e não propor que fique favoravelmente condicionado, como foi anunciado na última semana.

Aqui ficam três dos vários erros e lacunas apontados por este especialista ao documento divulgado pela APA em Julho passado, no que diz respeito às aves:

1. Considera-se que a construção do novo aeroporto tem impacto apenas local

O EIA afirma que a expressão espacial do impacto do aeroporto é apenas local, pois os seus efeitos ficariam circunscritos à área do Estuário do Tejo. Isso é “desadequado”, pois os efeitos nas aves migradoras “vão-se repercutir em toda a rota migratória do Atlântico Leste”, indica José Alves no parecer.

Exemplos? O maçarico-de-bico-direito (Limosa limosa) é uma das espécies que o investigador mais tem estudado. Os comportamentos destas e de outras aves no estuário são hoje bem conhecidos pelos cientistas, que seguem os seus movimentos com aparelhos de seguimento remoto.

Estima-se que entre Janeiro e Fevereiro, o Estuário do Tejo é usado como abrigo e fonte de alimento por cerca de 50.000 maçaricos-de-bico-direito, boa parte dos quais ali permanecem todo o Inverno. Estes maçaricos também frequentam outras regiões da Europa e alguns ainda a África Ocidental.

Depois de vários estudos, sabe-se hoje que esta espécie se divide em duas populações no maior estuário português. “Um desses grupos de maçaricos, estima-se que entre 10.000 a 15.000 aves, reproduz-se na Islândia. Depois de deixarem o Estuário do Tejo, essas aves passam ainda pela Holanda enquanto outras optam pelo Reino Unido”, mas a Islândia é o destino final. Mais tarde, regressam a Portugal.

Maçarico-de-bico-direito (subespécie Limosa limosa islandica), que inverna no Estuário do Tejo e nidifica na Islândia. Foto: Hans Hillewaert/Wiki Commons

Já o segundo grupo de maçaricos, que terá cerca de 35.000 a 40.000 indivíduos, reproduz-se em países da Europa Central: Alemanha, Holanda, Bélgica, Dinamarca, Polónia. Muitas das aves desde grupo passam o Inverno todo no Estuário do Tejo, mas “parte preferem invernar na África Ocidental (Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau) e páram no estuário português para se reabastecerem, em Janeiro e Fevereiro”, a caminho dos locais de nidificação.

Todos estes maçaricos são um exemplo da importância do estuário para as aves migradoras, que com o novo aeroporto “poderão não conseguir abastecer o suficiente durante as paragens migratórias, ficando impedidas de alcançar os seus destinos”, nota o investigador português.

“A nível internacional, no que diz respeito a números totais de aves limícolas invernantes, o estuário do Tejo detém o 2º lugar no contexto ibérico e ocupa o 12º lugar no enquadramento da rota migratória do Atlântico Leste, ocupando uma posição estratégica e fundamental para as aves que o utilizam”, salienta, no parecer entregue à APA.

Em resposta à Wilder, aponta vários exemplos dessa importância: as populações invernantes de maçarico-de-bico-direito (cerca de 50.000 aves), de pilrito-comum (cerca de 12.000), alfaiates (cerca de 6.000) e tarambolas-cinzentas (cerca de 2.000).

Alfaiate. Foto: Andreas Trepte/Wiki Commons

Além das espécies limícolas, geralmente associadas a zonas húmidas como os estuários – limícola vem de limus, significando que vivem em lodo ou lama – também os anatídeos (aves palmípedes, como os patos) têm aqui uma presença importante. Feitas as contas, considerando apenas gansos-bravos, piadeiras e marrequinhas-comuns, estima-se que essas três espécies somam um total de 18.500 aves no Inverno, na zona do Estuário.

Gansos-bravos. Foto: Jac. Janssen/Wiki Commons

Por outro lado, a área do Estuário do Tejo está classificada como reserva nacional e como zona de protecção especial para a avifauna (ZPE), fazendo parte da Rede Natura 2000. “A área de implantação do Aeroporto do Montijo está em contacto com os limites da ZPE e as rotas propostas para a descolagem e aproximação das aeronaves atravessarão ambas as áreas classificadas”, avisa José Alves.

2. Faltam dados e estudos no terreno sobre as aves do Estuário

O docente critica também que o EIA não tenha recorrido à recolha de dados no terreno para verificar e actualizar a informação relativa às aves do estuário. Em causa estão a importância e a localização das áreas de refúgio e de alimentação próximas do local previsto para o novo aeroporto.

É que os dados referidos no documento foram recolhidos em estudos científicos realizados há 10 e 15 anos e limitam-se a um pequeno número de espécies, aponta. No que respeita à actualidade, “não houve qualquer recolha de dados sobre a distribuição e número de efectivos da avifauna que habita o estuário do Tejo.”

Reserva Natural do Estuário do Tejo. Foto: Paulo Valdivieso/Wiki Commons

Sabe-se hoje, por exemplo, que os maçaricos-de-bico-direito “usam diariamente, seguindo o ritmo das marés, as zonas estuarinas na envolvente da base área do Montijo – para onde está previsto o novo aeroporto – sobretudo durante o período de Setembro a Dezembro.” Algumas dessas aves deslocam-se em Janeiro para os arrozais da Lezíria, “onde serão afectadas pelas rotas previstas no EIA para descolagem e aproximação das aeronaves”, nota José Alves, em declarações à Wilder.

Outro caso é o dos colhereiros, “onde é claro que sobrevoam o local proposto para o aeroporto quando se deslocam entre zonas de alimentação e de refúgio.”

Bando de colhereiros. Foto: Artemy Voikhansky/Wiki Commons

“É com recurso a dados antigos não validados, extrapolações para além do aceitável, assunções baseadas num número muito limitado de espécies e aplicações de modelos erradas que se avaliam os impactes do funcionamento do Aeroporto do Montijo nas áreas e no número de aves afetadas”, acrescenta ainda o cientista, no parecer entregue durante a consulta pública.

Um exemplo, refere, “é a utilização de dados de distribuição e abundância de aves limícolas na área intertidal (áreas de alimentação por excelência destas espécies) que foram recolhidos em 2002 e 2003 (período de Dezembro a Março)”. Esta informação tem mais de 15 anos e não houve qualquer tentativa para a comprovar, critica, salientando que “estes dados são desactualizados” e que a dinâmica do estuário está diferente. De fora ficaram também as espécies que usam o estuário após o período nupcial, depois dos meses de Primavera.

“É portanto impossível determinar se os dados considerados, em termos de estimativa de áreas usadas e números de aves afectadas nas zonas de alimentação, são representativos da situação actual e de todo ciclo anual”, afirma.

3. Áreas afectadas pelo ruído dos aviões estimadas “de forma errada”

O recurso a dados desactualizados não é a única falha apontada.

O biólogo defende que não se pode considerar, ao contrário do que sucede no EIA, que “o comportamento das aves limícolas perante o ruído provocado por uma aeronave a jacto será idêntico àquele provocado por uma buzina de ar comprimido activada durante três segundos, onde se produz um ruído quase instantâneo e curto, com o mesmo nível de decibéis”.

Avião da Ryanair a aterrar no aeroporto da Portela, Lisboa.
Foto: Bene Riobó/Wiki Commons

Por outro lado, o mesmo estudo “estima estas áreas [com aves perturbadas pelo ruído] de forma errada ao considerar os 60 decibéis como ‘sem perturbação’, quando no estudo original que lhe serve de base (e apesar de limitações várias desse mesmo trabalho), este nível de ruído provoca perturbação nas aves estudadas”.

Assim, José Alves avisa que o barulho provocado pelas aeronaves, desde que ultrapasse os 60 decibéis, vai afectar “todas as espécies que se alimentam na zona intertidal – ou seja, na área do estuário que fica a descoberto durante a maré vazia -, nos arrozais e as que usam os refúgios de preia-mar (maré cheia)” .

“A área afectada será portanto muito superior àquela indicada no EIA e sem a mesma ser determinada com alguma exactidão, não se pode saber qual deve ser a área onde se aplicam medidas de compensação ou mitigação”, sublinha.


Saiba mais.

Lembre aqui os milhares de flamingos que se contaram no Estuário do Tejo em 2017, um recorde face às contagens realizadas até então.

E conheça os dados conhecidos relativos às espécies de aves que ocorrem no maior estuário português, publicamente divulgados no âmbito do projecto The Critical Site Nework.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.