Aves marinhas. Foto: Wilder/arquivo

Trabalhando com a vida selvagem: Maria Dias e as aves marinhas

No dia em que foi publicado um estudo mundial sobre as aves marinhas aproveitámos para fazer algumas perguntas a Maria Dias, bióloga portuguesa que é a coordenadora científica marinha da Birdlife International.

WILDER: O estudo sobre aves marinhas publicado na revista Science Advances só foi possível graças à Seabird Tracking Database da Birdlife International. Pode explicar como funciona e para que serve?

Maria Dias: A Seabird Tracking Database é o maior repositório de dados de seguimento de aves marinhas a nível global. Atualmente armazena 15 milhões de localizações de 132 espécies de mais de 200 colónias de aves marinhas em todo o mundo. Foi criada em 2004, inicialmente com um foco apenas nos albatrozes e nas pardelas e para ajudar a combater o problema da pesca acidental de aves marinhas. O objetivo era juntar todos os dados disponíveis sobre a distribuição destas espécies, recolhidos por vários investigadores em todo o mundo, para identificar áreas de maior risco de encontro entre as aves marinhas e as embarcações de pesca (sobretudo a pesca de palangre). Em 2014, a Seabird Tracking Database expandiu-se aos restantes grupos de aves marinhas. Os seus dados são regularmente analisados para atualizar os mapas de interação com pescas e outras ameaças, identificar áreas importantes para as aves no meio marinho (IBA marinhas) e promover a criação de áreas marinhas protegidas em vários países e no mar alto. A BirdLife tem trabalhado também de perto com a Convenção da Diversidade Biológica para garantir que as IBA marinhas são integradas na rede de Áreas Marinhas de Importância Ecológica ou Biológica (EBSA, Ecologically or Biologically Significant Marine Areas). A Seabird Tacking Database é também uma ferramenta para promover a partilha de dados entre investigadores e incentivar estudos colaborativos, como este agora publicado no jornal Science Advances, entre muitos outros. 

W: Enquanto bióloga que trabalha com aves marinhas, o que mais a entusiasma nestas aves? 

Maria Dias: O que mais me fascina nas aves marinhas é a sua incrível capacidade de viajar. Algumas das migrações mais espectaculares do planeta são feitas por aves marinhas – como as da famosa gaivina-do-Árctico, mas não só. As cagarras são capazes de migrações impressionantes também, assim como muitas outras espécies menos conhecidas. Uma freira-do-Bugio atravessa 12.000 quilómetros de mar, desde as ilhas da Madeira até ao lado oposto do Atlântico Norte, numa “simples” viagem de alimentação durante o período reprodutor. As aves marinhas são capazes de atravessar oceanos, de norte a sul e de este a oeste, numa única viagem – utilizam o espaço a uma escala muito diferente da que estamos habituados a ver na maioria dos outros animais. Para uma cagarra, o oceano Atlântico (e até um pouco do Índico), é a sua “casa”. Cabe-nos garantir que assim o será também no futuro, e essa é a razão pela qual trabalho para o seu estudo e conservação.

W: Por que são as aves marinhas especialmente vulneráveis e ameaçadas?

Maria Dias: As aves marinhas são um dos grupo animais mais ameaçados.  Mais de 30% das espécies estão em risco de extinção e quase metade das suas populações estão em declínio. As aves marinhas dependem tanto de ecossistemas marinhos (onde se alimentam) como de terrestres (onde se reproduzem), e por isso sofrem da pressão humana nestes dois ambientes. No mar, as aves marinhas estão particularmente ameaçadas pela pesca, sobretudo devido à captura acidental nas redes e nos anzóis, mas também devido à sobrepesca. Em terra, as maiores ameaças são a predação por espécies invasoras introduzidas – como ratos e gatos – mas também a captura directa de ovos e crias nas colónias. Por último, as alterações climáticas estão a ter impacto em mais de ¼ das espécies, tanto nos seus habitats terrestres como marinhos. Muitas espécies são afectadas por mais do que uma destas ameaças. 

W: O que se pode fazer, em especial as organizações de ornitologia como a Birdlife International, para aumentar o grau de apreciação e interesse das pessoas por estas espécies? Isto porque serão das aves menos conhecidas da maioria, já que passam tanto tempo em alto-mar, como o estudo vem agora confirmar. 

Maria Dias: A maioria das pessoas desconhece, de facto, estas espécies, precisamente porque passam muito tempo longe da nossa vista quando estão no mar, mas também porque muitas nidificam em ilhas remotas ou de difícil acesso. Algumas espécies são, no entanto, mais famosas entre nós – o caso das cagarras (ou cagarros), por exemplo, bem conhecidas pelos habitantes e turistas das ilhas dos Açores. Estas espécies podem, e devem, ser usadas como “bandeiras” para chamar a atenção de outras menos conhecidas (por exemplo aquelas que migram através dos nossos mares, mas que raramente se vêem em terras portuguesas – como a pardela-de-barrete ou a pardela-preta). Estudos como este agora publicado são também excelentes veículos de promoção, ao mostrar como estas aves têm a capacidade de ligar países e regiões tão distantes. Penso que isso não deixará de fascinar as pessoas. Mas publicar artigos não é suficiente. Há que divulgar os resultados para o público em geral e fazê-los chegar a quem decide. É aí que as organizações como a BirdLife e os seus parceiros nacionais (no caso de Portugal, a SPEA, Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves) têm um papel muito importante, ao garantir que a Ciência seja efectivamente tida em conta nas políticas de conservação, tanto a nível nacional como internacional. 


Saiba mais.

Descubra aqui os resultados do estudo agora publicado sobre as migrações das aves marinhas nos oceanos do planeta.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.