Lince-ibérico. Foto: Programa de Conservação Ex-Situ

Para trazermos o lince de volta precisamos de corredores ibéricos. E genética

O esforço para trazer de volta o lince-ibérico a Portugal e Espanha prepara-se para uma nova fase. Depois da criação de novas populações selvagens é crucial garantir que estes felinos se possam movimentar entre elas.

 

No início da Primavera nascem os primeiros linces-ibéricos em estado selvagem. A 27 de Março, o projecto de conservação que está a recuperar territórios para este felino, o LIFE Iberlince (2011-2018), anunciou as primeiras ninhadas desta temporada.

A fêmea Granadilla teve três crias na área de reintrodução do Vale de Guarrizas (Jaén). E em Doñana, uma das populações mais antigas de lince, foi detectada uma ninhada com duas crias.

“As crias de ambas as ninhadas encontram-se em boas condições e estão a ser alimentadas pelas suas progenitoras”, de acordo com as primeiras observações dos técnicos do Iberlince.

 

Foto: Iberlince

 

Estas duas zonas, Guarrizas e Doñana, fazem parte do território actual desta espécie Em Perigo de extinção. Actualmente, os únicos 547 linces-ibéricos do planeta vivem na Andaluzia (em quatro zonas: Doñana-Aljarafe, Andújar-Cardeña, Guarrizas e Guadalmellato), na Extremadura espanhola (Valle del Matachel), em Castela-La Mancha (Serra Morena Oriental e Montes de Toledo) e no Vale do Guadiana (Mértola e Serpa).

Travar a extinção da espécie é uma missão feita de fases que se somam umas às outras. A primeira foi conseguir reproduzir o lince-ibérico em cativeiro. Depois foi criar e consolidar novas populações, que se juntaram às da Serra Morena e de Doñana. E agora surge com mais premência a necessidade de criar corredores para que os animais se possam movimentar entre elas.

“O lince-ibérico deixou de ser uma espécie Criticamente Em Perigo de extinção mas continua em perigo”, disse à Wilder Rodrigo Serra, veterinário e director do Centro Nacional de Reprodução do Lince-ibérico (CNRLI), em Silves. Neste centro já nasceram mais de 100 linces em oito anos.

Além dos atropelamentos, da dependência das populações de coelho-bravo e do envenenamento e da perseguição, há um outro desafio para a sobrevivência da espécie: a diversidade genética da espécie demasiado baixa.

Uma das formas para conseguir aumentar essa diversidade é fazer com que os animais de diferentes populações se encontrem e se reproduzam. Por enquanto só há casos de linces “emigrantes” ocasionais. Como o Mundo que chegou a Serpa vindo da população de Doñana. E, mais tarde, a sua irmã Nairobi, que fez o mesmo percurso. A ligação entre os linces de Doñana (Andaluzia) e do Alentejo já tinha acontecido antes com os linces Caribou (em 2010), Hongo (2013), Kahn e Kentaro (2015) e Lítio (2016). Mas o risco de mortalidade é elevado. Dois destes animais acabaram as suas viagens atropelados em Portugal.

 

Lince-ibérico. Foto: Programa de Conservação Ex-Situ

 

A dispersão de linces jovens, à procura de territórios com alimento e outros felinos de barbas, é um fenómeno comum. Que consigam passar de uma população para outra, levando consigo a sua identidade genética, é algo crucial para a sua sobrevivência.

Sabe-se hoje que o lince-ibérico tem uma das menores diversidades genéticas do mundo. Em Dezembro de 2016, uma equipa de 50 cientistas conseguiu sequenciar o genoma da espécie e publicou a sua investigação, na revista Renome Biology. Concluíram que o ADN do lince-ibérico sofre de uma “erosão extrema”. Na verdade, o genoma deste felino tem menos diversidade genética do que outros mamíferos ameaçados, como o diabo-da-Tasmânia, ou de aves, como o íbis-japonês.

Quanto mais consanguíneos forem os animais que se reproduzam, menor será o tamanho das ninhadas e menor será a taxa de sobrevivência das crias, por exemplo.

“Os núcleos ainda não estão devidamente conectados, não há corredores naturais devidamente consolidados. E isso traz-nos o risco acrescido de qualquer coisa que aconteça a uma destas populações – como incêndios ou epidemias – poder eliminar um núcleo”, acrescentou Rodrigo Serra.

 

Vale do Guadiana, uma população viável per si

Hoje o único núcleo populacional de lince em Portugal fica no Vale do Guadiana. Aqui vivem 41 animais. Pedro Rocha, director do Departamento de Conservação da Natureza e Florestas do Alentejo do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), deu à Wilder números importantes: dos 41 linces, 27 foram reintroduzidos, 16 já nasceram ali, dois vieram por si próprios da população selvagem de Doñana (Andaluzia) e quatro acabaram por morrer. No total há nove fêmeas com territórios.

 

Mel espreita viatura. Foto: Técnico/ICNF/LIFE Iberlince

 

Para Rodrigo Serra, este núcleo alentejano “tem condições para albergar uma população viável per si” de lince. “Mas obviamente que a espécie, para ser viável, tem de ter núcleos que comuniquem entre si. Este Iberlince começou a criar novas zonas de reintrodução, o próximo Iberlince terá de trabalhar a consolidação destas novas zonas e facilitar a comunicação entre elas.”

“O fluxo genético entre as populações vai ser o que permitirá à espécie sobreviver a longo prazo”, acrescentou. “O ideal é que não tenhamos de ter tanta intervenção na gestão genética das populações.”

Desde o início do programa de conservação ex-situ de lince-ibérico, concentrado na reprodução em cativeiro, as equipas dos cinco centros de cria da Península Ibérica formam os casais de linces tendo em conta, principalmente, a sua diversidade genética. E o mesmo acontece com os linces escolhidos para serem reintroduzidos na natureza.

“Antes de cada temporada de soltas fazemos uma revisão genética dos animais que temos. Partindo dos linces que existem em cada zona de reintrodução na natureza decidimos quais dos animais em cativeiro serão soltos ali. São escolhidos a dedo para cada zona para serem o mais geneticamente diferentes”, explicou.

 

Solta de Nara no Vale do Guadiana, em Maio de 2017. Foto: Helena Geraldes

 

Por enquanto, a diversidade genética desta espécie é assustadoramente baixa. “A reprodução assistida pode dar-nos alguma flexibilidade mas não vai inventar genética. E seria muito mais interessante usar genética mais antiga, de peles de linces que viveram no século XIX, por exemplo, do que de animais que morreram há pouco tempo. Mas isso ainda não está ao nosso dispor. Temos de jogar com aquilo que existe.”

“Sabemos que estamos à bordinha. Mas os linces continuam a resistir no terreno, a sobreviver, a conquistar territórios, a alimentar-se, a reproduzir-se, a fazer o seu papel. O vórtex da extinção foi claramente parado. Quais são as consequências para o futuro? Por enquanto não sabemos.”

 

[divider type=”thick”]Saiba mais.

Saiba como é cuidar dos linces no Vale do Guadiana.

Leia a nossa série “Como nasce um lince-ibérico” e conheça os veterinários, video-vigilantes, tratadores e restante equipa do Centro Nacional de Reprodução (CNRLI) em Silves.

 

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.