Lago Crawford, em Ontário, no Canadá. Foto: Angus Chan/Wiki Commons

Um lago canadiano guarda a chave para o início do Antropoceno, uma nova época geológica

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Alejandro Cearreta, professor catedrático de Paleontologia na Universidade do País Basco, explica-nos a importante mudança que se faz sentir no tempo geológico e o que estão os cientistas a fazer a esse respeito. É o adeus ao Holoceno.

Vivemos realmente no Antropoceno, o tempo geológico marcado pelo impacto global da actividade humana? E se assim for, quando começou e que lugar da Terra reflecte melhor o começo desta nova época?

A estas perguntas procura responder o Grupo de Trabalho sobre o Antropoceno, estabelecido em 2009 pela Subcomissão de Estratigrafia do Quaternário, com o fim de propor a definição deste conceito e estimar o seu potencial como uma possível unidade de tempo geológico.

Actualmente, o Grupo de Trabalho sobre o Antropoceno está a finalizar a sua tarefa depois de ter eleito o lago Crawford (no Canadá) como o lugar que contém o registo sedimentar de referência para definir o início do Antropoceno, como foi anunciado esta terça-feira, 11 de Julho. Mas o que tem de especial este sítio para ser proclamado como uma espécie de linha divisória entre épocas geológicas distintas?

A pegada da Grande Aceleração

Desde a sua formação, o Grupo de Trabalho sobre o Antropoceno tem avaliado vários tipos de evidências físicas, químicas e biológicas preservadas em sedimentos e rochas, publicando numerosos trabalhos científicos que têm explorado a sua natureza e relevância.

Estes estudos concluíram que o Antropoceno é de facto significativo à escala geológica devido à rapidez e magnitude dos impactos humanos recentes sobre os processos que se operam na superfície da Terra. Muitos destes impactos têm gerado mudanças irreversíveis que superam a pequena faixa de variabilidade natural do Holoceno, que começou há 11.700 anos.

Nos estratos geológicos, o Grupo de Trabalho do Antropoceno identificou um conjunto importante de indicadores que coincidem com a denominada “Grande Aceleração” de meados do século XX, impulsionada por um aumento sem precedentes na população humana, no consumo de energia, na industrialização e globalização que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial. Entre esses indicadores, destacam-se os seguintes:

  • Radioisótopos das experiências com armas termonucleares na atmosfera (como o plutónio).
  • Partículas carbonáceas (ou seja, ricas em carbono) originadas pela queima de combustíveis fósseis a elevadas temperaturas.
  • Microplásticos.
  • Mudança na biodiversidade, incluindo a extinção, o movimento de espécies para fora da sua área natural de distribuição e a grande expansão de organismos domésticos.

O que é um “prego dourado”?

Ao longo dos anos, o Grupo de Trabalho do Antropoceno tem vindo a concordar em grande parte que o Antropoceno é geologicamente real e que deve formalizar-se como uma unidade independente dentro da escala internacional do tempo geológico.

O seu início estaria localizado em meados do século XX, nos anos 1950, de acordo com os sinais simultâneos e globais registados nos sedimentos desde então.

Além disso, estabeleceu que é necessário determinar o seu lugar de referência mediante um limite material e temporal chamado estratotipo global (GSSP) ou, coloquialmente, “prego dourado”. Este é o método mais aceite para formalizar unidades geológicas durante os últimos 540 milhões de anos.

Critérios de selecção

Desde 2019, desenvolveu-se um projecto colaborativo entre o Grupo de Trabalho do Antropoceno e numerosos laboratórios de investigação no âmbito de uma iniciativa internacional denominada Anthropocene Curriculum, promovida pela Haus der Kulturen der Welt e pelo Instituto Max Planck para a História da Ciência, ambos na Alemanha.

Foram recebidas inicialmente doze propostas detalhadas de diferentes secções geológicas que poderiam albergar este GSSP, localizadas em cinco continentes e situadas em oito ambientes geológicos distintos. Todas elas tinham sido publicadas em 2023 num número especial temático da revista científica Anthropocene Review. Estes trabalhos constituíram a principal fonte de informação para que as/os membros do Grupo de Trabalho do Antropoceno com direito a voto elaborassem as suas propostas durante o processo de selecção.

Após um exame inicial, alguns desses lugares não se consideraram adequados para albergar o GSSP, pelo que finalmente o Grupo de Trabalho do Antropoceno analisou com detalhe nove secções de referência. As candidaturas idóneas foram aquelas que continham finas camadas de sedimento que podiam analisar-se ano a ano e cuja idade, além do mais, podia ser corroborada graças à presença de elementos radioactivos, para assegurar um registo sedimentar completo.

Os procedimentos estratigráficos estabelecidos para decidir sobre um GSSP estão já estandardizados em geologia e são comuns para a definição de qualquer tempo geológico. Assim, um “prego dourado” requer a presença local de um marcador físico que se possa ver a olho nu e pelo menos um sinal indicador, como por exemplo uma alteração geoquímica) que seja encontrada em sedimentos locais e rochas da mesma idade, por todo o planeta.

A maioria das equipas que apresentaram estas propostas identificaram o plutónio como o indicador principal e propuseram o início do Antropoceno a partir de um aumento nos vestígios deste marcador radioactivo.

E o vencedor é…

A discussão inicial sobre as forças e debilidades de cada localização iniciou-se em Outubro de 2022, e a lista inicial reduziu-se a três possibilidades.

De acordo com os resultados obtidos, as secções geológicas mais relevantes encontravam-se na Baía Beppu (Japão),  no lago Sihailongwan (China) e no lago Crawford (Canadá). Após uma análise detalhada sobre a natureza dos sinais de plutónio e uma nova votação, ficaram como finalistas os sítios lacustres da China e Canadá.

No final, o lago Crawford obteve 61% dos votos, pelo que foi eleito como o lugar que albergará a proposta de GSSP para a época do Antropoceno.

Localização do lago Crawford.  Francine MG McCarthy et al. Sage Journal, 2023.CC BY

Situado na província de Ontário, a oeste de Toronto, as camadas sedimentares no fundo deste lago tinham sido investigadas originalmente para demonstrar a ocupação esporádica da região por povos indígenas americanos e a sua posterior colonização pelos europeus. O novo estudo geológico aumentou o número de indicadores preservados nas suas várias camadas anuais, que são formadas por uma alternância entre calcite pálida, depositada no Verão, e lâminas orgânicas escuras acumuladas no Inverno.

Fotografia do testemunho ou amostra CL-2011, do fundo do lago, com o detalhe da profundidade das diferentes camadas anuais, indicando a posição do limite proposto para o ano 1950.  Francine MG McCarthy et al. Sage Journal, 2023CC BY

A camada que está proposta como um marcador visual do GSSP encontra-se a 15,6 cm de profundidade, na base de uma lâmina de calcite depositada no Verão de 1950, e foi seleccionada devido ao rápido aumento de plutónio desde então. Esta marca coincide além disso com um aumento das partículas carbonáceas e uma importante alteração do ecossistema, identificada por um declínio no pólen de ulmeiro e numa substituição das espécies de diatomáceas, um grupo de algas unicelulares.

Adeus ao Holoceno

É muito importante não confundir entre o início da actividade humana e o Antropoceno. Este último conceito não inclui o impacto inicial dos humanos, que foi regional e foi aumentando ao longo do tempo, mas define sim a consequência da resposta planetária ao enorme impacto da Grande Aceleração.

O Antropoceno é uma parte do tempo geológico e, apesar da sua curta duração, beneficiará de uma formalização que determine com precisão o seu significado e utilização em todas as ciências e noutras disciplinas académicas. Será reconhecido assim o final de uma época relativamente estável na história da Terra, o Holoceno.

The Conversation

Este artigo foi traduzido para português a partir do artigo original publicado na The Conversation, com permissão do seu autor, Alejandro Cearreta, professor catedrático de Paleontologia na Universidade do País Basco, Euskal Herriko Unibertsitatea, e também membro do Grupo de Trabalho do Antropoceno, desde 2010.