Oceanos. Foto: Mobibit/Pixabay

Miguel B. Araújo: “Não temos conseguido garantir que as áreas protegidas sejam blindadas à má gestão territorial”

O que pode 2021 trazer para a Biodiversidade e para a Conservação da Natureza? Com o ano que começa, a Wilder lança cinco perguntas a especialistas e responsáveis portugueses que trabalham para conhecer ou proteger o mundo natural.

Miguel Bastos Araújo é investigador coordenador no Museo Nacional de Ciencias Naturales de Madrid e Professor Catedrático da Universidade de Évora, além de Professor Catedrático convidado do Imperial College de Londres. É ainda membro do Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.

WILDER: O que espera de 2021 para a Conservação da Natureza em Portugal e no mundo?

Miguel B. Araújo: Há um contexto internacional interessante. Por um lado, a União Europeia produziu o Pacto Ecológico Europeu que inclui o mais ambicioso conjunto de objetivos de política ambiental da sua História e prevê mecanismos de financiamento sem precedentes. Tenho particular expectativa na Estratégia Europeia de Biodiversidade 2030 e na estratégia que lhe está associada, “do Prado ao Prato”, que vincula a política agrícola a objetivos de sustentabilidade ambiental. A nível europeu parece haver consciência que os problemas ambientais não se resolvem de forma isolada mas que requerem convergência de políticas setoriais.  É um passo em frente muito significativo. Portugal, estando inserido na UE deverá alinhar-se por estes padrões e o grande desafio será estender estes propósitos ao resto do mundo no âmbito da Conferência das Partes da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CBD) das Nações Unidas (COP 15), que terá lugar no final do ano na China.

W: No seu entender, quais devem ser as prioridades para este ano em prol da natureza em Portugal? E mais concretamente, para a presidência portuguesa da União Europeia?

Miguel B. Araújo: É uma discussão que tenho tido com alguns colegas – nomeadamente a Rosário Oliveira, Isabel Sousa Pinto, Sara Antunes, Emanuel Gonçalves e Cristina Marta Pedroso – e consideramos que existem duas prioridades estratégicas para Portugal e dois dossiers adicionais que são estratégicos no contexto europeu.  

A primeira prioridade é conferir maior centralidade ao binómio alterações climáticas e biodiversidade. As alterações climáticas induzidas pelo aumento de concentração de gases com efeito de estufa marcarão o século XXI e o fim dos aproximadamente 11 mil anos de relativa estabilidade climática. O sudoeste europeu, nomeadamente a metade sul de Portugal, situa-se entre as regiões europeias mais afetadas pelas alterações climáticas, dada a conjugação de aumento de temperaturas com a projetada redução de precipitação num território já exposto a níveis de aridez elevados. Em 2021 estará em cima da mesa a discussão sobre expansão de áreas protegidas na Europa e sobre “binding targets” de restauro ecológico. Ambos estes mecanismos de conservação poderão, se bem enquadrados, contribuir para conferir maior resiliência climática aos territórios.

A segunda prioridade refere-se ao binómio biodiversidade e oceano. O oceano é o maior ativo estratégico de Portugal, correspondendo a 97% do seu território. A Europa tem a ambição de liderar a agenda internacional do oceano e existe a expectativa de que Portugal tenha uma liderança proporcional à importância territorial da sua zona económica exclusiva e plataforma estendida. O oceano é essencial para o sucesso das medidas de combate às alterações climáticas e da crise de extinção de espécies pelo que o sucesso ou insucesso destas políticas têm consequências globais e
nacionais. Portugal tem aqui uma oportunidade única de liderar a UE a defender o objetivo de 30% de proteção do oceano em áreas marinhas total ou fortemente protegidas em 2030, um mecanismo
vinculativo para a proteção do alto mar e a integração das medidas de gestão das pescas com as medidas de conservação da natureza.

Além destas prioridades estratégicas para o país, destacam-se dois dossiers fundamentais para a conservação da biodiversidade europeia:

O primeiro dossier fundamental é o restauro do território, tanto em ambientes terrestres como aquáticos. As Nações Unidas identificaram o período de 2021-2030 como a Década dedicada ao Restauro dos Ecossistemas e a UE identificou o restauro como uma das valências centrais e mais ambiciosas da Estratégia de Biodiversidade 2030. Além do restauro de áreas naturais importantes, uma parte fundamental da Estratégia de Biodiversidade 2030 incidirá sobre territórios modificados pelas atividades humanas. O restauro do território humanizado irá pressupor a recuperação de ecossistemas agrícolas, florestais, dulçaquícolas ou costeiros cujas atividades económicas sobre eles exercidas possam ter conduzido à sua degradação.

O segundo dossier fundamental é o que se refere ao financiamento para a biodiversidade. A fim de satisfazer as necessidades da Estratégia de Biodiversidade 2030, nomeadamente as prioridades
de investimento na Rede Natura 2000 e na infraestrutura verde e azul, será necessário desbloquear pelo menos 20 mil milhões de euros por ano para investimentos relacionados com a natureza. Tal exigirá a mobilização de fundos privados e públicos a nível nacional e da UE, nomeadamente através de um conjunto de programas a integrar no próximo orçamento de longo prazo da UE. 

W: Quais as espécies ameaçadas que, na sua opinião, precisam de ajuda premente em 2021? 

Miguel B. Araújo: Tenho dificuldade em responder à pergunta tal e qual é formulada pois não é questão de opinião mas sim de análise rigorosa de uma matriz muito complexa de dados onde se cruzam níveis de ameaça das diferentes espécies e dinâmicas espaço-temporais das próprias ameaças. Mais do que singularizar uma espécie ou outra o que eu gostaria de ver instituídos são mecanismos de monitorização do estado da biodiversidade, suportados por sistemas de observação tecnologicamente avançados e acompanhados por reflexões críticas sobre os dados extraídos. Ando a dizer isto desde 1997 mas para além de ações pontuais de compilação de dados, estruturados por grupos taxonómicos e sem garantia de réplicas temporais, pouco se avançou. A biodiversidade representa um sistema complexo e é muito difícil gerir o sistema com informação deficiente. É um pouco como se pretendêssemos tomar decisões sobre a economia, gerindo-a sem ter acesso a estatísticas económicas e financeiras detalhadas.    

W: Se coubesse a si decidir, qual seria a principal medida que tomaria este ano para tentar travar a extinção das espécies?

Miguel B. Araújo: Tomaria as medidas necessárias para garantir uma eficaz gestão das áreas protegidas em Portugal, ao que se seguiria um trabalho minucioso de zonamento e classificação de novas áreas de modo a garantir o cumprimento dos objetivos europeus e internacionais de assegurar a conservação de 30% do território nacional e 10% de forma estrita. De momento temos aproximadamente 22% do território continental terrestre sujeito a algum tipo de figura de conservação e 0,7% conservados de forma estrita (0.02% no mar). É evidente que o desafio de conservar 10% do território de forma estrita é grande mas não é menos evidente que não temos conseguido garantir que os espaços naturais protegidos sejam blindados à má gestão territorial ambiental. Estufas de agricultura intensiva, urbanizações novas, autoestradas a ser planificadas e pedreiras a céu aberto em parques naturais são exemplos dramáticos de uma incapacidade de entender o significado destas áreas como santuários de natureza, locais de inspiração e refúgio para a humanidade e elementos essenciais da nossa identidade. Esta situação tem de mudar rapidamente sob pena de os nossos filhos já não virem a ter acesso a uma das biodiversidades mais ricas do território europeu. A minha geração e a geração anterior têm uma grande responsabilidade para conseguir inverter a trajetória de degradação que temos vindo a assistir.    

W: Qual, ou quais, os projectos na área da Biodiversidade em que estará a trabalhar em 2021 que mais o entusiasmam?

Miguel B. Araújo: Estou envolvido em vários projetos de investigação científica que me motivam enormemente mas no contexto desta entrevista faz sentido referir o projeto “Biodiversidade 2030 CONTRIBUTOS PARA A ABORDAGEM PORTUGUESA PARA O PERÍODO PÓS-METAS DE AICHI, financiado pelo Fundo Ambiental, que visa desenvolver um conjunto de recomendações para a melhorar a gestão da biodiversidade em Portugal.


Recorde as respostas de Helena Freitas, de Ângela Morgado, de Ricardo Rocha, de Miguel Dantas da Gama e de Paula Nunes da Silva.


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Marco Nunes Correia é ilustrador científico, especializado no desenho de aves. Tem em mãos dois guias de aves selvagens e é professor de desenho e ilustração.

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Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.