Foto: José Gomes / IFCN
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Crónicas naturais: Ilhéu de Fora

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Paulo Catry, biólogo, leva-nos consigo ao ponto terrestre mais remoto e menos visitado de Portugal, no arquipélago das Selvagens. Inesquecível, este fim do mundo.

Ilhas Selvagens, abril 2023

Uma vertigem de sítios remotos, de espaços sem linhas construídas; ânsia de tempo sem motores nem vozes ou gritos. Claro que já nada no planeta existe que não tenha a influência, indireta que seja, do ser humano. Mas há sítios preciosos onde a vida medra lenta e a paisagem se espraia semelhante ao que terá sido ao longo de milénios.

Selvagens. O encanto destas ilhas vem logo do topónimo que perdura desde a cartografia mais antiga (A.D.1375). Lembro-me, desde o liceu, de sonhar com um sítio destes, bravio de nome e de espírito. Só muitos anos mais tarde, em 2004, tive ocasião de aqui chegar pela primeira vez, para iniciarmos estudos de aves marinhas que até hoje continuam. 

Durante séculos a Selvagem Grande foi visitada, com menor ou maior regularidade, por portugueses e canarinos que aqui vinham colher barrilha e outros produtos vegetais, peixe e moluscos para a salga, guano para adubo, ou cagarras juvenis de que tudo se aproveitava: gordura, carne e penas. Num passado já remoto certamente houve tentativas de colonização, pelo menos temporária, de que ficaram testemunhos sob a forma de alguns muros em pedra solta que retêm o solo parco, delimitam antigas hortas ou que tiveram outros propósitos difíceis de adivinhar. Mistérios minerais feitos de mão esperançosa ou de força desesperada, frustrantemente insondáveis.

Casal de cagarras Calonectris borealis. Foto: Paulo Catry

Em 1968, um inglês residente na Madeira, Paul Alexander Zino, com grande interesse pela avifauna, comprou ao proprietário das Selvagens o direito da colheita de cagarras, mas com o objetivo de as salvar. Foi o início das atividades de conservação nas ilhas, que tiveram como sequência a compra da própria terra pelo Estado Português, em 1971, e a criação de uma Reserva Natural. 

Em tempos remotos introduziram-se coelhos e cabras na Selvagem Grande e vieram murganhos à boleia por sua livre vontade. Introduziu-se também uma planta invasora, a tabaqueira Nicotiana glauca. Todos estes colonizadores tiveram um impacto avassalador na flora e na vegetação, suspeita-se que causando extinções por descobrir e documentar. 

Em 2000 e 2001, o Serviço do Parque Natural da Madeira (atualmente incorporado no IFCN – Instituto das Florestas e da Conservação da Natureza – Madeira) lançou-se numa ousada e bem-sucedida campanha de erradicação da tabaqueira. Não menos difícil foi a erradicação de murganhos e coelhos, conseguida em 2002 (as cabras haviam desaparecido em data e de causas incertas). Ficou assim a Selvagem Grande livre das espécies exóticas mais perniciosas. Vinte anos depois, nota-se o efeito na paisagem e no desenvolvimento espetacular da vegetação autóctone arbustiva, possível apesar do clima extremamente seco destas ilhas.

Na Selvagem Pequena não há indícios de permanência humana nem de espécies invasoras. Ambiente pristino. Apenas durante alguns anos houve presença regular de dois vigilantes da natureza durante a primavera e o verão, agora nem isso. Mais para oeste ainda, encontra-se o ponto terrestre mais remoto e menos visitado do território português, o Ilhéu de Fora (também chamado de Pitão Pequeno).

Vista aérea da Selvagem Grande. Foto: José Pedro Granadeiro

O desembarque no Ilhéu de Fora é difícil. São raros os dias de mar calmo e vento suave em que a empreitada é possível. Por mim, andava há anos a desejar aqui chegar. Desta feita, com a expedição organizada pelo IFCN comemorativa dos 50 anos da Reserva (já tem 50 + 2 anos, mas meteu-se uma pandemia pelo caminho…) houve uma oportunidade excecional, patrocinada por um São Pedro e um Éolo particularmente bonançosos.

O Ilhéu de Fora cobre uns meros 7 ou 8 hectares de terreno de aparência virgem (excetuando o inevitável lixo marinho na praia). Estamos a cerca de 300 km a sul da Madeira e a 160 km a norte das Canárias; a 20 km a sudoeste da Selvagem Grande, onde ainda se dá alguma presença humana, minúscula, mas regular. Se a vizinha Pequena justifica o nome de Selvagem com toda a propriedade, o Ilhéu de Fora nem chega a ter o estatuto de ilha, quase esquecido do mundo dos homens. 

Vista aérea do Ilhéu de Fora. Foto: José Gomes / IFCN

Tenho 4 horas em terra num dia de sol e de ar transparente. O horizonte é uma linha perfeita, confluência de dois azuis que envolvem esta ilha do tesouro. Milhares de tocas de pequenas aves marinhas, calcamares Pelagodroma marina, que se escondem no subsolo. Encontro 85 ninhos de cagarras Calonectris borealis com vestígios de ocupação do ano passado, em breve terão novas posturas. Sete ninhos ativos de gaivota. No intermareal há lapas gigantes Patella candei em profusão e burriés raros em elevada densidade. Estas conchas já não atingem tamanhos destes nas terras de gente. Só aqui, neste fim de mundo.

Ninho de gaivota Larus michahellis, com ovos de coloração heterogénea. Foto: Paulo Catry
Caramujos do intermareal, de dois tipos, incluindo uma subespécie Phorcus atratus selvagensis, endémica das Selvagens. Foto: Paulo Catry

E neste fim de mundo há uma espécie de figueira-do-inferno (Euphorbia anachoreta) endémica e raríssima. “Do inferno” é nome por vezes dado às Euphorbias por serem venenosas, mas na verdade são plantas celestiais, de formas e de biologias únicas. Conto rapidamente meia centena de indivíduos vivos*, além de algumas já secas. Há figueiras grandes mas rasteiras, adultas, e outras ainda jovens. Bom sinal, a reprodução continua. Meia centena de plantas apenas, únicas, não existem em mais parte nenhuma. Nem sequer existem na maior parte do Ilhéu de Fora, estão concentradas em menos de um hectare de afloramento rochoso, ausentes nas zonas mais arenosas e também dos outros solos pedregosos do ilhéu. Plantas endémicas de um quintal de rocha, parte menor de um pequeno rochedo no meio do vasto Atlântico, átomo insignificante no espaço sideral.

Paisagem do Ilhéu de Fora onde são visíveis várias figueiras-do-inferno Euphorbia anachoreta, endemismo com uma população global de apenas 53 indivíduos. Foto: Paulo Catry
Euphorbia anachoreta sobre o Ilhéu de Fora, com vista para a Selvagem Pequena e a Selvagem Grande na distância. Foto: Paulo Catry

Como é que estas figueiras aqui chegaram, a esta terra antiga de milhões de anos que já foi grande no meio do oceano e depois mirrou, da erosão e da subsidência, até ficar um ponto ínfimo de areia branca e rocha negra? Um ponto de luz brilhante no meio do azul onde não há nada que não seja um marulhar permanente e, na primavera, um ocasional grito de garajau. E tanto horizonte, tanto! Vou daqui feliz por saber que em noites de insónia hei de embalar-me com a memória deste bocado de chão à tona do Atlântico, um tudo de nada de terra esquecida onde se acolhem aves do largo e resistem meia centena de figueiras-do-mar.

* na verdade, ao dia de hoje, são 53 as Euphorbia anachoreta do Ilhéu de Fora e do mundo todo (Dinarte Teixeira, IFCN, com. pess.).   


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.