Covid-19: O que a vida selvagem ganhou e perdeu com a pandemia

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Peritos na linha da frente da batalha contra a extinção das espécies revelaram esta manhã quais os impactos da pandemia em leopardos-da-pérsia, coalas, tigres, elefantes, chimpanzés e gorilas num webinar organizado pela Fundação Mirpuri.

Entre os milhares de notícias sobre a Covid-19, que há um ano fazem parte da agenda, uma pequeníssima parte fala do que aconteceu às espécies selvagens e a quem as protege.

Esta manhã, entre as 10h00 e as 12h00, José Dias Ferreira – coordenador do programa europeu de reprodução do leopardo-da-pérsia (Panthera pardus saxicolor) – foi um dos seis peritos que falaram dos impactos da Covid-19 na conservação da vida selvagem no mundo.

Leopardo-da-pérsia. Foto: Johannes Maximilian/WikiCommons

Actualmente, a população selvagem do leopardo-da-pérsia está classificada como Em Perigo na Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN). Estima-se que existam entre 800 e 1.000 animais na natureza.

O programa de reprodução desta espécie é coordenado desde 2013 pelo Jardim Zoológico de Lisboa. O objectivo é conseguir ter mais leopardos disponíveis para o Programa de Preparação e Habituação à Vida Selvagem, no Centro de Reprodução de Leopardos de Sochi, na Rússia, a funcionar desde 2008.

Mas esta máquina conservacionista bem oleada foi perturbada com a Covid-19.

José Dias Ferreira enumerou o que foi obrigado a mudar. Por exemplo, foi suspensa a transferência de leopardos entre Zoos, uma medida crucial para manter populações saudáveis. As crias nascidas em 2017 tiveram de ficar mais tempo no centro de reprodução, “ocupando espaço importante para novos leopardos”. Além disso, na última época reprodutora não foram formados casais, obrigando à separação física dos animais ou à utilização de contraceptivos.

Na natureza, outras espécies selvagens sentiram os efeitos da pandemia que abalou o mundo.

Manada de elefantes em África. Foto: Pixabay

Remco Van Merm é coordenador da atribuição de financiamento à conservação de espécies na Save our Species Iniciative, da UICN.

Em África, a Covid-19 causou uma redução na capacidade das patrulhas contra a caça furtiva, limitou as acções de sensibilização das comunidades locais (o que abre a porta ao aumento dos conflitos entre pessoas e animais selvagens), causou uma redução das receitas do turismo, levou ao aumento da caça furtiva e do risco de transmissão da Covid-19 à vida selvagem, como a gorilas, chimpanzés e bonobos.

Sobre este risco de transmissão, Rui Bernardino, veterinário no Zoo de Lisboa, revelou que tem sido feita investigação sobre a susceptibilidade de diferentes espécies à infecção. Por exemplo, os primatas de África e da Ásia são muito susceptíveis de ficarem infectados. Mas os primatas da América do Sul são menos. Esta informação é importante para preparar planos de vacinas direccionados a determinadas espécies no futuro.

Além de investigação científica, a comunidade conservacionista tem disponibilizado financiamento a quem está na linha da frente a travar o desaparecimento de espécies, desde elefantes a pangolins.

Segundo Remco Van Merm, a sua unidade na UICN nunca atribuiu tanto financiamento a candidaturas de emergência na área da conservação como em 2020. De Abril a Dezembro de 2020, a UICN recebeu candidaturas para este apoio, acabando por financiar 30 projectos na região sub-saariana de África, que beneficiaram 1,3 milhões de pessoas das comunidades locais.

Estes projectos visam, sobretudo, enviar mais meios humanos para o terreno para combater a caça furtiva e proporcionar formas de subsistência alternativas a quem ficou sem as receitas do turismo e tem de caçar animais selvagens para cuidar da sua família.

Gorila-da-montanha. Foto: Sharp Photography/Wiki Commons

Isto porque, com a Covid-19 aumentou a caça furtiva aos animais selvagens. Mas o tráfico de animais e de derivados parece ter sido reduzido de alguma forma. Segundo explicou Robert Campbell, gestor do programa United for Wildlife, o tráfico foi afectado pelo encerramento de fronteiras e de portos e pelas restrições nas viagens de avião.

Mas como esta é uma questão complexa, está a ganhar força o comércio ilegal online, com a abertura de novos mercados.

Bishal Singh Bonal, líder do projecto Global Tiger Forum, na Índia, salientou como efeitos negativos os impactos na economia global, na saúde, no encerramento dos Zoos e na perda de receitas e as infecções de animais selvagens – como leões, tigres e leopardos -, especialmente nos Estados Unidos.

Mas também recordou os efeitos positivos. Segundo este perito foram registados menos casos de abate ilegal de rinocerontes na Índia e em África. Por exemplo, na Reserva de Tigres Kaziranga, na Índia, apenas foram registados dois casos em 2020. “Os caçadores estavam eles próprios preocupados com a sua saúde. Além disso, as equipas no terreno continuaram a fazer o seu trabalho e a dar o seu melhor. Deveria haver um aplauso para eles”, comentou.

A redução no turismo aliviou a pressão nos animais selvagens de Zoos e de áreas protegidas e há agora menos poluição do ar e da água e menos ruído.

Na Austrália, Kellie Leigh é directora-executiva da Science for Wildlife. Foi uma das centenas de pessoas que estiveram nas florestas queimadas a tentar resgatar os coalas que sobreviveram aos incêndios do Verão de 2020.

Depois dos incêndios veio a pandemia. Para Kelli Leigh o pior impacto da Covid-19 foi o afastar as atenções das alterações climáticas por detrás dos devastadores incêndios.

Mas além disso, a conservação dos coalas foi afectada porque a circulação foi condicionada, o que teve impacto na reintrodução dos animais recuperados na natureza. E porque foi suspenso o programa de voluntariado que reunia 140 pessoas. Hoje, entretanto, já voltou a funcionar.

Rinocerontes no Parque Nacional Kruger. Foto: Bernard Gagnon/Wiki Commons

As equipas no terreno não deixaram de trabalhar mas instituíram-se novos protocolos de segurança. Algo que também aconteceu do outro lado do mundo, no Zoo de Lisboa, onde trabalham José Dias Ferreira e Rui Bernardino. Ali trabalham todos os dias tratadores, peritos e outros profissionais dos quais dependem inúmeras espécies selvagens. “Os tratadores fazem um trabalho muito específico, não podem ser substituídos de um dia para o outro se algo correr mal”, disse Rui Bernardino.

O Zoo de Lisboa adoptou turnos de 14 dias e uma rigorosa avaliação aos seus funcionários. “O trabalho não pode parar” por causa da pandemia.

Nem a conservação da natureza pode ser suspensa, quiseram sublinhar os peritos.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.