Covid-19: Resgate de quebra-ossos em contra-relógio para escapar a bloqueio da circulação

As recentes quarentenas de várias cidades por causa do Covid-19 estão também a ter impactos na conservação da natureza. Esta cria de quebra-ossos, com apenas dois dias de vida, foi transportada em contra-relógio para escapar a uma possível quarentena na Andaluzia. A operação foi chamada o “Resgate da cria Ryan“.

 

Este ano, o trabalho de reprodução de quebra-ossos em cativeiro está a ser afectado pelo Coronavírus. “Algumas crias precisam ser transferidas entre centros de reprodução para serem adoptadas e criadas por quebra-ossos adultos. Caso contrário terão de ser criadas por humanos”, disse hoje, em comunicado, a Fundação Vulture Conservation Foundation (VCF).

Mas as limitações de deslocações “não nos vão permitir fazer estes transportes”, acrescentou.

Por isso, antes de maiores bloqueios e restrições por causa do Coronavírus, a VCF decidiu tentar a transferência de uma cria de quebra-ossos de Torreferrusa (na Catalunha) para Guadalentín (na Andaluzia). Algo que era até agora relativamente simples de fazer. Mas não desta vez.

Na tarde de sexta-feira, dia 13 de Março, os técnicos do Centro de Reprodução do Quebra-ossos de Guadalentín em Cazorla receberam um telefonema de Álex Llopis, coordenador do programa de reprodução em cativeiro da espécie. A questão era que a cria BG1068, também chamada Ryan, e que nasceu a 11 de Março no Centro de Reprodução de Torreferrusa, precisava ser transportada para Guadalentín para ser adoptada por um dos casais de quebra-ossos deste centro.

Isto porque na Catalunha não havia nenhum casal de quebra-ossos disponível para cuidar desta cria de grande importância genética, já que a sua ascendência é 50% pirenaica.

“As restrições impostas na Comunidade Autonómica da Catalunha por causa da pandemia, e a possibilidade de esta região poder ficar incomunicável, levaram os técnicas da Catalunha a decidir transportar esta cria nos seus primeiros dias de vida, porque mais tarde tal poderia ser impossível”, segundo a Junta da Andaluzia em comunicado divulgado hoje.

Em situações normais espera-se que as aves tenham cerca de 10 dias de vida mas, neste caso, não era aconselhável deixar passar mais tempo.

 

Cria Ryan durante a operação de transporte. Foto: VCF

 

Conscientes de que o tempo corria contra eles, os técnicos de ambos os centros dedicaram-se ao máximo para conseguir realizar o transporte. Uma das principais complicações era conseguir as licenças das autoridades de ambos os governos regionais.

Foi assim que arrancou a operação “Resgate da cria Ryan” e as autoridades da Catalunha e da Andaluzia deitaram mãos à obra, para que Ryan conseguisse chegar o mais depressa possível a Guadalentín.

E conseguiram. No final de sexta-feira foram concedidas as licenças necessárias e a equipa de Guadalentín e a de Torreferrusa organizaram a operação de transporte no sábado de manhã, em contra-relógio.

Duas pessoas saíram sábado de manhã cedo de Guadalentín e duas outras fizeram o mesmo de Torreferrusa, circulando por estradas desertas. Cerca das 12h30, as duas equipas encontraram-se a meio caminho na província de Valência. Aí, a equipa de Guadalentín recebeu a cria que tinha estado aos cuidados da equipa de Torreferrusa, mantendo sempre todas as medidas sanitárias definidas para minimizar as possibilidades de propagação do Covid-19.

 

Entrega da cria dos técnicos da Catalunha para os técnicos da Andaluzia. Foto: VCF

 

Ryan acabou por chegar a Guadalentín cerca das 17h30 “em perfeitas condições” e foi recebido pelos dois técnicos que permanecem no centro, sem contacto com o mundo exterior na medida do possível para evitar a entrada do vírus no centro e o seu impacto no programa de reprodução do quebra-ossos.

Nos próximos dias, esta cria será adoptada por um dos casais de quebra-ossos reprodutores do centro, que ficará responsável pela alimentação da cria e por lhe ensinar tudo o que um abutre desta espécie precisa saber para viver em liberdade, na natureza.

No total vivem neste centro 27 quebra-ossos, o que faz de Guadalentín o maior centro de uma rede de outros centros e zoos que trabalham para conservar esta espécie ameaçada de abutre.

O quebra-ossos (Gypaetus barbatus) é o abutre mais ameaçado da Europa. Houve tempos em que era comum em Portugal, mas acabou por desaparecer. Assim como na Andaluzia, devido a envenenamentos e perseguição humana.

Em toda a Europa existem hoje cerca de 200 casais, 130 dos quais em Espanha.

 

Quebra-ossos nos Pirinéus, Espanha. Foto: Francesco Veronesi/Wiki Commons

 

Desde 1996 está a decorrer na Andaluzia um projecto para estabelecer uma população autónoma e estável na região, cuja peça central é o Centro de Reprodução de Guadalentín, que faz parte de um projecto europeu para recuperar a espécie. É deste e de outros centros de reprodução em cativeiro que saem todos os quebra-ossos reintroduzidos na natureza.

Nas últimas décadas, os conservacionistas têm libertado quebra-ossos na natureza para reintroduzir ou reforçar a população desta espécie na Europa.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.