E ao fim de mais de 10 anos, Raquel e os colegas descobrem uma nova espécie de osga em Cabo Verde

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Durante anos, Raquel Vasconcelos fez várias expedições em Cabo Verde para saber que espécies de répteis existiam no país. Acabou por descobrir uma pequena osga que não existe em mais sítio nenhum do mundo, a osga de São Nicolau.

A espécie, cuja descrição foi agora publicada num artigo na revista Zootaxa, recebeu o nome científico de Hemidactylus nicolauensis.

Fêmea da nova osga da ilha de São Nicolau em Cabo Verde, Hemidactylus nicolauensis, depositada no futuro Museu de História Natural de Cabo Verde. Foto: Gunther Köhler

“Ainda não tem nome comum, já que em Cabo Verde os locais chamam indistintamente de osga quase todas as espécies nocturnas de répteis terrestres do arquipélago”, explicou à Wilder Raquel Vasconcelos, do CIBIO-InBIO (Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos, InBIO Laboratório Associado da Universidade do Porto).

“No entanto, poderíamos chamar-lhe de “osga de São Nicolau”, pois embora já existam duas osgas de outro género na ilha (do género Tarentola), estas são comunmente chamadas de osgas-de-muros noutros lugares do mundo e poderiam assim ser distinguidas desta.”

É uma pequena osga “muito parecida com as osgas do mesmo género (Hemidactylus) de Cabo Verde”. Ainda assim, distingue-se destas pela “ausência de tubérculos no dorso e na parte dorsal da cauda, pela presença de dois poros antes da cloaca nos machos e de duas escamas dos dedos mais longos completamente divididas”, acrescentou a investigadora.

Detalhe das lamelas dos dedos da nova osga da ilha de São Nicolau, característica diagnóstico de Hemidactylus nicolauensis. Foto: Gunther Köhler

Com a descrição desta nova espécie, São Nicolau alberga agora três espécies de osga únicas dessa ilha e a diversidade de répteis documentada em Cabo Verde aumenta para 23 espécies endémicas.

A osga de São Nicolau foi encontrada pelos colegas de Raquel, Gunther Köhler e Pierre-André Crochet, co-autores do artigo, no coração das montanhas no noroeste da ilha de São Nicolau, nos habitats um pouco mais húmidos deste árido arquipélago.

Esta investigação vem no seguimento dos estudos do doutoramento de Raquel Vasconcelos, realizado em Cabo Verde.

“Tinha como objectivo saber que espécies de répteis existiam no país, combinando metodologias genéticas e ecológicas com as tradicionais de morfologia”, explicou a investigadora.

Além disso, queria saber como estas espécies se distribuíam pelas ilhas e porquê, “de forma a garantir dados para melhor as proteger, dado que todas as espécies nativas do país são únicas no mundo (endémicas)”.

“Na altura já tínhamos evidências genéticas de que se tratava de uma nova espécie. Mas dado o mau estado dos animais que se encontravam no Museu de História Natural de Londres e a dificuldade em encontrar estes animais dada a raridade dos mesmos, demorámos mais de 10 anos a reunir mais provas para a descrição agora apresentada.”

Durante cinco anos, Raquel Vasconcelos estudou todos os répteis de Cabo Verde. “Realizei inúmeras expedições para amostrar cerca de 11% do território, visitando todas as ilhas e ilhéus, mesmo os desabitados do arquipélago e todos os habitats.”

“Já sabíamos que nos faltava descrever esta espécie para ‘arrumar a casa’, mas dada a sua raridade não tínhamos amostras suficientes para provar que eram diferentes das restantes espécies do mesmo género, pois não se encontravam estes animais há décadas em algumas ilhas onde na literatura se dizia que estavam presentes no passado”.

Ainda faltava saber muito sobre estas espécies em Cabo Verde. Por exemplo, “quando, em 2006, encontrámos na ilha de Santo Antão a espécie irmã desta que agora descrevemos, esta já não era vista há mais de um século!”

Segundo Raquel Vasconcelos, “foi necessário mais uma década para conseguirmos dados de outras ilhas onde as osgas deste género eram igualmente raras para poder ter a certeza que as que se encontravam em São Nicolau eram geneticamente e morfologicamente diferentes”.

“E claro, visitar inúmeros museus e tentar ver se encontrávamos mais exemplares que não estivessem referidos na literatura.”

Esta descoberta para a Ciência, acrescentou, só foi possível graças ao apoio de entidades governamentais (INIDA, Direcção Nacional do Ambiente) e não governamentais (e.x: Cabeólica, Biosfera I) “e de tantos amigos, colegas e desconhecidos de Cabo Verde que apoiaram a realização destes trabalhos ao longo destes 14 anos e dos curadores que emprestaram os exemplares para o nosso estudo”.

O que significa esta descoberta

Até agora, Raquel Vasconcelos já tinha descrito outras espécies para a Ciência. “Já tinha descrito em colaboração com outros colegas mais quatro espécies de répteis (três para Cabo Verde e uma para o Iémen onde fiz o meu pós-doc) e ainda três novas subespécies para Cabo Verde”.

Mas de cada espécie nova para a Ciência, aumenta não só o conhecimento sobre o mundo natural mas também as hipóteses de proteger essas mesmas espécies.

“Com a descrição desta nova espécie, Cabo Verde demostra, mais uma vez, ser um local com uma extraordinária diversidade herpetológica (e não só) em comparação com as restantes ilhas da Macaronésia”, comentou a investigadora.

Ainda este mês passado, a UNESCO aprovou a classificação das ilhas cabo-verdianas do Fogo e do Maio como Reserva Mundial da Biosfera.

“A descoberta de espécies únicas noutros lugares do arquipélago vem evidenciar a necessidade urgente em proteger estas ilhas extraordinárias, em educar as populações locais sobre a riqueza que desconhecem ser única, apoiando, por exemplo, o avanço do Museu de História Natural na ilha de São Vicente, no qual já se encontra depositado um exemplar desta nova espécie. Cabo Verde tem um enorme potencial para ensinar ao mundo como conciliar a protecção da Natureza com desenvolvimento local.”

E apesar de ter acabado de ser descrita, esta espécie já estará ameaçada. “Esta espécie, embora ainda não tenha sido classificada formalmente, está seguramente Em Perigo Crítico de Extinção, dado o reduzido número de localidades onde foi encontrada e o baixo número de animais encontrado”, sublinhou à Wilder.

Por isso, acrescentou, “é urgente assegurar a protecção” destes animais. “O país está a fazer um grande esforço nesse sentido e tem vindo a apoiar vários pequenos projectos para saber mais sobre a ecologia destas espécies e para promover a educação ambiental para, em conjunto com os especialistas, desenvolver planos de acção para a conservação.”

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.