Investigador português avalia conservação de carnívoros na África do Sul

Qual o papel das reservas privadas de ecoturismo ou de caça, em cada vez maior número, na conservação de leopardos ou hienas na África do Sul? Gonçalo Curveira-Santos passou lá oito meses à procura da resposta.

Gonçalo Curveira-Santos, 29 anos, passou os meses de Agosto a Novembro de 2017 e depois de 2018 em trabalho de campo em KwaZulu-Natal, no Nordeste da África do Sul. 

“Este foi, talvez, o melhor período da minha vida”, contou à Wilder o investigador do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais – cE3c, na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Gonçalo Curveira-Santos recorda os meses em que viveu e trabalhou “constantemente rodeado e integrado na natureza e vida selvagem da savana africana”, em contacto permanente com a megafauna, desde elefantes e rinocerontes e girafas e leões. “Foi particularmente especial para mim por ser também um sonho muito antigo.”

Foto: Gonçalo Curveira-Santos

Gonçalo Curveira-Santos é fascinado pelos grandes carnívoros. “O leopardo fascina-me particularmente por reunir a imponência de um grande predador com o carácter reservado e misterioso que me cativa na generalidade deste grupo animal.”

Este investigador queria saber como os carnívoros sul africanos menos estudados respondem a modelos e medidas de conservação diferentes: áreas protegidas tradicionais, reservas privadas ou fazendas de caça.

Para responder a esta pergunta, Gonçalo Curveira-Santos e a sua equipa, com a ajuda de guarda-parques e funcionários das reservas, instalaram 294 câmaras de foto-armadilhagem em árvores ou postes metálicos, a 30 centímetros do solo, numa área com cerca de 700 quilómetros quadrados. Essas são câmaras activadas por movimento e calor e fotografam os animais de forma automática quando estes passam por elas.

Foto: Gonçalo Curveira-Santos

A área de estudo foi a uMkhuze Game Reserve, área protegida com 440 quilómetros quadrados e criada há 108 anos, (que pertence ao iSimangaliso Wetland Park, Património Mundial da UNESCO), a reserva privada de ecoturismo Mun-ya-wana (com 270 quilómetros quadrados, criada em 1991), fazendas de caça comercial e terras geridas de forma comunitária pelos povos locais.

As câmaras geraram um total de 7.224 imagens de 13 espécies de carnívoros: desde pequenos mangustos e chacais a grandes leopardos e hienas. 

Gonçalo Curveira-Santos. Foto: Michael Langley

O resultado deste trabalho foi publicado no final de Agosto num artigo na revista Journal of Applied Ecology.

Na África do Sul, as reservas privadas (ecoturismo ou caça), que eram antigas áreas agrícolas ou de pecuária, são um complemento às áreas formalmente protegidas. “Têm um papel muito importante na conservação da vida selvagem”, disse Gonçalo Curveira-Santos. Especialmente quando a expansão das populações humanas e a reconversão de terras limita o espaço e os recursos disponíveis para a vida selvagem.

A crescente indústria do ecoturismo e da caça comercial é tida como um sucesso de conservação na África do Sul, graças ao aumento e ligação entre habitats para a vida selvagem.  

Foto: Gonçalo Curveira-Santos

Mas nem tudo é simples nesta descentralização da conservação da vida selvagem na África do Sul. “Os benefícios destas áreas para a conservação dos carnívoros predadores é menos claro”, escrevem os autores do estudo. “Conflitos de interesses entre riqueza e conservação da vida selvagem dominam as decisões locais, tornando um desafio concretizar medidas conservacionistas”.

Além disso, as medidas de gestão são canalizadas para a megafauna carismática com um elevado valor de mercado, como os leões e as chitas, deixando de fora os restantes carnívoros, normalmente os mais pequenos e elusivos. 

“A panóplia de desafios e oportunidades ecológicos associados a cada paisagem, seja pela forma como os predadores dominantes são geridos ou na resposta à perturbação, levanta uma série de hipóteses muito interessantes e de relevância aplicada para a conservação.”

Este trabalho focou-se nas espécies que conseguem transpor as vedações entre propriedades e que não são activamente geridas. “Isto incluí todos os carnívoros selvagens da região, exceptuando leões, chitas ou mabecos, cujas populações estão confinadas aos limites das reservas (seja por não conseguirem transpor as vedações, seja por serem activamente realocados se escaparem) e geridas com reintroduções e controlo populacional.” 

“Há uma falta importante de informação sobre as respostas da biodiversidade” a estas formas de gestão e de conservação, disse o investigador à Wilder. “Sabemos que os carnívoros, particularmente os grandes predadores, assumem uma posição central neste debate, pelo seu carisma, valor económico, função ecológica e propensão ao conflito. No entanto, a grande maioria das espécies de carnívoros sul africanos permanece negligenciada em termos de investigação e desconectados das medidas de gestão.” 

Foto-armadilhagem regista 13 espécies de carnívoros

A partir das imagens conseguidas pelas câmaras de foto-armadilhagem, os investigadores compararam os dados obtidos para áreas com diferentes níveis de medidas de conservação.

“No nosso trabalho detectámos 13 espécies, desde pequenos mangustos, a chacais, e até grandes leopardos e hienas.”

Foto: Gonçalo Curveira-Santos

Os resultados revelam que a diversidade de espécies é semelhante na área formalmente protegida, nas reservas privadas e fazendas de caça, e significativamente menor nas áreas com aldeias.

No entanto, a taxa de ocupação destas espécies, representativa da sua abundância relativa, é significativamente maior na área formalmente protegida do que nas de gestão privada.

Foto: Will Clothier

“Estes resultados indicam que as áreas protegidas formais e antigas podem desempenhar um papel fundamental que não pode ser replicado facilmente, seja pela sua dimensão temporal ou prioridades de gestão. Especialmente para espécies carnívoros que não são geridas de forma ativa” e que não fazem parte formal dos planos de reintrodução e recuperação de predadores, explica Gonçalo Curveira-Santos. 

“Os nossos resultados apoiam a noção de que as reservas privadas e as fazendas de caça desempenham um papel complementar às áreas formalmente protegidas, mas também que é importante reconhecer que elas não desempenham o mesmo papel e podem não ser uma panaceia de conservação. Para os governos é atraente transferir a conservação para o sector privado, mas para avaliar os benefícios de conservação de o fazer são necessários alguns parâmetros de referência, e as áreas protegidas sob proteção formal de longo prazo são referências importantes para um ‘estado natural'”, frisou Gonçalo Curveira-Santos.

“A conservação da natureza deve ser a prioridade nas áreas protegidas enquanto nas reservas privadas a conservação está naturalmente condicionada por interesses económicos, seja o ecoturismo ou a produção, o que torna a implementação de práticas de conservação baseadas em evidências um desafio”, acrescentou. 

Foto: Gonçalo Curveira-Santos

Os investigadores acreditam que este trabalho contribui para o desenvolvimento de planos de conservação mais eficazes. “Entretanto, garantir a manutenção a longo prazo de áreas protegidas é provavelmente a nossa aposta mais segura”.

Mas estarão as áreas protegidas da África do Sul preparadas para os grandes desafios, como as alterações climáticas?

Acredito que a capacidade de resposta a qualquer ameaça irá sempre depender da valorização que seja feita pela sociedade, na África do Sul e a nível global, das áreas protegidas e do consequente investimento, tanto em termos de recursos como de investigação”, responde Gonçalo Curveira-Santos à Wilder. 

Foto: Gonçalo Curveira-Santos

“As alterações climáticas na África do Sul são uma realidade (por exemplo, aumento da sazonalidade), mas é difícil dizer até que ponto as áreas protegidas estão preparadas. Os trabalhos que existem apontam para a necessidade de uma abordagem dinâmica da conservação, onde a relevância e a eficiência das ações de gestão são regularmente avaliadas – a capacidade de o fazer depende claramente de um investimento adequado.”

Para o futuro, o investigador defende a “necessidade de uma visão mais holística destas comunidades no desenvolvimento de planos de gestão de predadores na região, para além do grupo restrito dos grandes carnívoros que tradicionalmente reúne a maior parte dos esforços de conservação e investigação”.

Em segundo lugar, defende “a manutenção a longo prazo de paisagens de mais pristinas e habitats ‘antigos’, que normalmente se encontram sob o estatuto de áreas protegidas”. “Manter áreas protegidas a longo-prazo como referências a um ‘estado natural’ é importante e provavelmente a nossa aposta mais segura para garantir a preservação dos processos ecológicos.”

Este trabalho foi desenvolvido em colaboração com investigadores da Universidade de Venda (África do Sul) e do Instituto Africano de Ecologia de Conservação, instituição que financiou o trabalho a par com a Fundação Nacional de Investigação da África do Sul, a National Geographic Society e o Wild Tomorrow Fund.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.