Tentilhão-de-Darwin da espécie Geospiza fortis. Foto: putneymark/Wiki Commons

Como a natureza “inventa” novas maneiras de ser: Todos os caminhos vão dar a… BCO2?

Pedro Andrade, investigador a trabalhar em biologia evolutiva no CIBIO-InBIO (Universidade do Porto), explica-nos o que têm em comum as lagartixas amarelas, a cor do bico dos tentilhões-de-Darwin e a pele e carne dos salmões.

Ao longo da evolução da vida na Terra, esta diversificou-se em inúmeras formas, contando atualmente com milhões de espécies que partilham uma história evolutiva profunda. Apesar desta grande diversidade, é comum encontrarmos exemplos do que podemos chamar de evolução convergente, que ocorre quando espécies distantes adquirem a características semelhantes durante os seus percursos evolutivos. A forma fusiforme superficialmente parecida dos tubarões, golfinhos e dos extintos ictiossáurios é um dos exemplos clássicos – todos são predadores marinhos adaptados para a rapidez, mas com uma história evolutiva independente desde há cerca de 470 milhões de anos.

Muitos organismos convergem em soluções semelhantes ao longo da sua evolução – como é que isto se manifesta a nível genético? Ilustração: Charles R. Knight (1911)

Estes destinos partilhados entre espécies distantes não são resultado do acaso. Para além de o ambiente influenciar o seu percurso evolutivo, a própria informação genética restringe, ou promove, a evolução de certas características.

Um bom exemplo para estudarmos a forma como organismos distintos aproveitam ferramentas genéticas semelhantes durante a sua evolução é a cor, que forma a base da história deste artigo. Os animais conseguem produzir uma grande diversidade de cores, mas muitos dos mecanismos subjacentes são semelhantes. Nos casos em que a cor é determinada pela deposição de pigmentos nos tecidos, é frequente encontrarmos os mesmos pigmentos em grupos distintos.

Por exemplo, as melaninas que dão cor ao cabelo e pele das pessoas são também responsáveis pela plumagem escura dos melros ou a pele castanha do sapo-comum. Outra família de pigmentos comuns nos animais são os carotenóides, responsáveis por cores vivas como amarelo, laranja e vermelho. São estes os pigmentos responsáveis pelo amarelo vivo dos chamarizes e verdilhões, entre outros animais. Os carotenóides são também importantes para o funcionamento normal do organismo, por exemplo através do seu papel na disponibilidade de vitamina A.

O funcionamento de um organismo é gerido por uma imensa rede de interações metabólicas. Por isso, é legítimo assumir que a evolução para os diferentes padrões de cor poderia ser feita por um sem número de vias independentes. No entanto, muitos estudos a nível genético sugerem que a evolução de determinadas características segue caminhos previsíveis.

Bons exemplos disto são os muitos estudos sobre a evolução de cores ligadas à deposição de carotenóides nos mais diferentes grupos de vertebrados. Mas afinal de contas, o que é que têm em comum as lagartixas amarelas, a cor das patas das galinhas, a pele e carne dos salmões, a cor do bico dos tentilhões-de-Darwin e a diferença de cores entre machos e fêmeas de tentilhões?

As patas das galinhas, a barriga das lagartixas e o corpo do salmão – o que têm em comum? Todos são pintados pelo mesmo pincel genético. Fotos: Melissa MB Wilkins (CC BY-NC 2.0), Javier Ábalos (CC BY-SA 2.0) e US Geological Survey.

Todos estes animais têm em comum o facto de, dentro de cada espécie, existir variação na extensão ou intensidade da coloração por carotenóides. Para além disso, nestes casos, essa variação na coloração é causada por mutações num mesmo gene, designado beta-caroteno oxigenase 2 (podemos chamar-lhe BCO2, para simplificar). Por exemplo, muitas lagartixas-dos-muros têm barrigas brancas enquanto outras, da mesma espécie (por vezes até irmãos numa mesma postura), possuem barrigas amarelas que resultam da deposição excessiva de carotenóides amarelos que adquiriram através da dieta. Isto acontece porque neste único gene, apenas um entre mais de 24 mil genes que se distribuem pela cadeia de DNA e que são responsáveis pelo funcionamento do animal, alguns indivíduos possuem mutações que levam a que o gene seja regulado de forma diferente na pele da barriga. Nas células da pele, o gene é menos ativo na degradação destes pigmentos obtidos pela dieta, resultando numa lagartixa mais colorida.

Mas porquê o BCO2? Naturalmente, os mais de 20 mil genes partilhados pelos genomas dos vertebrados não participam todos no metabolismo destes pigmentos. Entre absorção, transporte e degradação, é provável que o número de genes que são determinantes para a expressão de cor por carotenóides em vertebrados não seja muito maior do que umas poucas dezenas. Pelas suas funções metabólicas, o BCO2 torna-se assim um excelente candidato para esta tarefa evolutiva – a proteína deste gene tem funções gerais de degradação de vários carotenóides nas células dos vertebrados.

No entanto, e vital para este caso, é o seu gene irmão – BCO1 – que tem o principal papel na degradação de carotenóides adquiridos pela dieta durante o metabolismo da vitamina A. Estas funções do BCO1 provavelmente “libertam” o BCO2 para funções também importantes mas menos vitais do que a própria sobrevivência do animal, como é o caso da produção de ornamentos mais coloridos. O mesmo se poderá passar, por exemplo, com genes associados ao transporte de carotenóides no organismo, que é uma função também vital que não será facilmente desregulada em animais selvagens sujeitos à seleção natural.

Alterações profundas no funcionamento do BCO2 continuam a ter impactos importantes no bem-estar do organismo, mas se estas variantes genéticas promoverem esta alteração de funcionamento em regiões anatómicas mais restritas, como é o caso da pele ou das penas, estes efeitos podem ser minimizados.

Em lagartixas-dos-muros (Podarcis muralis) com uma variante genética específica, a proteína do gene BCO2 é menos ativa na degradação de carotenóides amarelos obtidos pela dieta, especificamente nas células da pele, por isso estes pigmentos acumulam-se neste tecido. Desta forma, gera-se diversidade na coloração nesta espécie. Em vários outros vertebrados, mecanismos semelhantes são usados para gerar estas cores. Fotos: Pedro Andrade.

O estudo da cor é um meio muito importante para a compreensão dos mecanismos que levam à evolução convergente, em grande parte porque a cor é uma característica relativamente simples e por isso mais facilmente estudada. Em características mais complexas, haverá certamente uma rede mais intrincada de relações entre genes e o meio ambiente durante várias fases do desenvolvimento do organismo, levando a que uma determinada característica externa se manifeste.

Mas mesmo nestes casos mais complexos, há evidências de que a evolução reaproveita alguns mecanismos comuns em organismos distantes. Por exemplo, há evidências de que tanto nos olhos nos vertebrados como dos insetos, dois tipos de órgãos visuais que evoluíram de forma independente, alguns dos mesmos genes são ativados durante o desenvolvimento embrionário. Isto demonstra como a evolução convergente pode ser vista a diversos níveis, desde as barbatanas dos tubarões e golfinhos, ou as asas das aves e morcegos, mas também ao nível dos genes – com exemplos como o do gene BCO2, um “pincel universal” para coloração por carotenóides em vertebrados.


Referências

Andrade, P., Pinho, C., i de Lanuza, G. P., Afonso, S., Brejcha, J., Rubin, C. J., … & Carneiro, M. (2019). Regulatory changes in pterin and carotenoid genes underlie balanced color polymorphisms in the wall lizard. Proceedings of the National Academy of Sciences, 116(12), 5633-5642.

Martin, A., & Orgogozo, V. (2013). The loci of repeated evolution: a catalog of genetic hotspots of phenotypic variation. Evolution, 67(5), 1235-1250.

Moran, N. E., Mohn, E. S., Hason, N., Erdman Jr, J. W., & Johnson, E. J. (2018). Intrinsic and extrinsic factors impacting absorption, metabolism, and health effects of dietary carotenoids. Advances in nutrition, 9(4), 465-492.


Pedro Andrade trabalha como investigador em biologia evolutiva no CIBIO-InBIO, Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéricos (Universidade do Porto), sobretudo com projetos relacionados genética de animais selvagens e domésticos.