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Crónicas naturais: Ainda do deserto à beira-mar

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Paulo Catry, professor e investigador do ISPA – Instituto Universitário, oferece-nos vislumbres da natureza que reveste os seus dias. Nesta crónica fala-nos ainda da sua viagem ao Banco de Arguim, na Mauritânia, e das espécies que lá viu.

Banco de Arguim, 04 Novembro 2021

Céu estrelado, mas o sol vai nascer não tarda. Andam lobinhos aqui à volta. Chamam-lhes lobos na literatura técnica recente, mas em geral todos os conhecem por chacais; contudo, os estudos genéticos mostram que os chacais do Sara não são muito aparentados com os demais, são antes primos mais próximos dos nossos lobos*. Nesta hesitação, chamo lobinhos aos Canis lupaster. Consolam-me. Nos tempos vagos da ornitologia sou aficionado de lobos e lobinhos. Aqui misturam-se as artes e as paixões, os lobinhos comem sobretudo aves (e as aves comem peixes, etc, mas isso é outra conversa) fica tudo entre amigos e conhecidos.

Miragem de lobinho Canis lupaster no deserto. Foto: Paulo Catry

Continuo pelo Parc National du Banc d’Arguin – PNBA, na transição do Sara para o Atlântico. De madrugada o respirar é fresco, o ar fluido preenche cada espaço da traqueia e dos pulmões.

Lobos pequenos e aves grandes. Foto: Paulo Catry

Do topo deste concheiro milenar vê-se o sol nascer sobre a Baía de Aouatif. Andam ostraceiros e seixoeiras na captura dos bivalves, os maçaricos perseguem caranguejos, os flamingos filtram diatomáceas da superfície líquida da vasa. Pelicanos-brancos passam em fiadas bem organizadas, planadores gigantescos, parecem hidroaviões a rasarem as águas. Deles chegou-nos um testemunho anónimo do século XV, através das crónicas de Gomes Eanes de Zurara ““…e especialmente há aí umas aves que não há em esta terra, que se chamam crós, e são todas brancas, de mor grandeza que cisnes, e têm os bicos de um côvado e mais, e de anchura de três dedos (…), e a boca e o papo é tão grande, que a perna de um homem, por grande que seja, até o joelho lhe cabe por ele.”

Concheiro pré-histórico na orla do Sara. Foto: Paulo Catry

Os concheiros como este que escolhi para atalaia são incontáveis no PNBA, enchem a paisagem. Na verdade, a Mauritânia é um mar de despojos arqueológicos pré-históricos. Um deslumbramento.

Há uns anos atrás, subi a uma duna num setor mais remoto e encontrei uma ponta de flecha perfeitamente esculpida, segundo os arqueólogos com milhares de anos de idade. Mas as pontas de flecha já são difíceis, aos poucos foram sendo apanhadas pelos nómadas e pelos forasteiros, e vendidas na cidade. O que abunda são conchas, pois claro, e restos de cerâmica, fragmentos de potes, pesos de argila usados na pesca, por vezes estilhaços antigos de ovos de avestruzes.

A dado momento, ainda antes de a História começar por estes lados, a exploração dos bivalves e gastrópodes cessou, não se sabe porquê. Quem por aqui andou durante milénios desvaneceu-se. Mais tarde vieram mouros com novos hábitos. Hoje ninguém come moluscos e nota-se: as arcas ou combés (como lhes chamam na Guiné – são uma espécie de berbigões gigantes Senilia senilis), crescem livres, duram décadas, e atingem tamanhos nunca vistos nos países onde são exploradas, ao longo da costa para sul. Aliás, nem nos grandes concheiros de outrora se encontram facilmente combés grandes como os que agora aqui vivem sobre a vasa. Já nesse tempo havia essa coisa do impacto da exploração dos recursos…

Pelicanos e flamingos no ar quente do meio-dia. Foto: Paulo Catry

Na aridez da Mauritânia, para além de conchas no deserto, cultiva-se poesia por todos os terreiros. Há sempre conversas que vão parar à poesia. É um desporto nacional, ganham troféus em competições internacionais, mesmo.

As pessoas da cidade, outrora nómadas, vão passar temporadas ao deserto. Espetam uma tenda na areia (as raimas – ou khaïmas – são as grandes tendas tradicionais que todos usam por aqui), enchem-na de espaço vazio com alguns tapetes e almofadas, praticamente mais nada. Bebem chá. E fazem poesia. Infelizmente não conheço o idioma, fico-me pelos céus estrelados.

O nosso acampamento de tendas tradicionais (raimas) numa ilha deserta. Foto: Paulo Catry

No ano 2000 eu vivia em Bissau e costumava abastecer-me numa loja de um mauritano da vizinhança. Conversávamos um pouco, por entre aquela agitação de urbe africana, com gente alegre, árvores, frutos, flores, música, risos, mulheres de vestidos multicolores, futebol de rua. Lembro-me de um dia o mauritano me confessar que depois de juntar dinheiro havia de voltar ao deserto. “Sim”, disse-me ele com um ar de quem apenas afirma o óbvio “claro que quero voltar: o que é que há neste país? NADA!”

Na maravilhosa e exuberante Guiné tropical não há raimas que abriguem do vento agreste do deserto, das tempestades de areia, e as raimas faziam-lhe falta. Aqui a via láctea esconde-se por detrás das árvores e das neblinas. Não há acampamentos silenciosos, nem a contemplação dos rebanhos de dromedários (outra obsessão nacional). Faltam horizontes, “não há nada”, por isso o meu amigo mauritano sonhava fugir de regresso a uma certa liberdade.

Paisagem. Foto: Paulo Catry

De volta a 2021, o dia foi longo, mas os grandes pelicanos descansam finalmente, de papo cheio, na orla do Sara. Uma libélula migradora veio à luz mortiça da raima que navega leve ao sabor das dunas e das constelações. Os lobinhos andam outra vez por aqui a rondar. Adormeço confortável, embalado num coro de uivos arrastados pelo vento.  

Rueness et al 2011, PLoS ONE; Gaubert et al 2021, PLoS ONE


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, na série Crónicas Naturais e também publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.