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Crónicas naturais: Berlenga e peixe-lua

Peixe-lua (Mola mola). Foto: Per-Ola Norman/Wiki Commons

Paulo Catry, investigador do ISPA – Instituto Universitário, oferece-nos vislumbres da natureza que reveste os seus dias. Nesta crónica, um encontro diferente, numa ilha que neste início de Outono se reveste de flores e cagarrinhas.

Berlenga, 02 Outubro 2021.

Visita à Berlenga hoje, com alunos do mestrado de biologia marinha. Tempo típico da Região Oeste pela manhã. Nuvens baixas e alguns chuviscos escondem as ilhas de quem se aproxima. Mar calmo sem ser liso, com as rugas finas de uma aragem que mal sustenta as cagarras, levezinhas. 

O mar e ilhéus vistos da Berlenga, a 2 de Outubro de 2021. Foto: Antía Rodríguez

Dobramos o Cabo Carvoeiro. Passam alcatrazes por nós, já há juvenis recentemente emancipados, vindos do norte da Europa. Pardelas-baleares sempre apressadas, porventura a ave mais ameaçada do continente, mas ainda regular por aqui. De todo em todo, poucas aves marinhas, falta-lhes vento para se porem ao caminho. Olhos postos na água, apetece ver um peixe-lua (Mola mola) e outubro é bom mês.

Mola mola sobressai pela simplicidade no meio da multidão esdrúxula da nomenclatura científica. Uma bola, que por vezes parece luz. Uns chamam-lhe sol (sunfish em inglês; que exagero!), outros chamam-lhe lua. Sim, tem cor e beleza de lua, bom nome, peixe-lua. Podia ser peixe-mó, que é o que mola quer dizer em Latim. Talvez mó seja ainda mais ajustado do que lua, mas também é menos charmoso. Ficou lua (e depois, qualquer dia já ninguém sabe o que é uma mó – de Lisboa a Peniche são tudo cabeços povoados por moinhos de vento em ruínas).

Os peixes-lua adultos são os maiores peixes ósseos do mundo (chegam a superar as duas toneladas). Não são raros, encontram-se em todos os grandes oceanos e, contudo, são ainda muito misteriosos. Pouco se sabe sobre a sua biologia da reprodução (uma fêmea pode transportar mais de 300 milhões de ovos!), e ainda há debate sobre o seu regime alimentar, sendo que pelo menos os maiores parecem especializados no consumo de medusas e de outros seres gelatinosos. De dia navegam boa parte do tempo por águas profundas (foi registado um mergulho a mais de 800 metros de profundidade) e de noite vêm mais para cima. No Atlântico Norte migram ao sabor das estações e em outubro muitos fogem para sul. 

Peixe-lua (Mola mola) deitado de lado, na superfície do oceano. Foto: Pline/Wiki Commons

Nas suas rotinas diárias, os peixes-lua passam alguns períodos junto à superfície, deitados de lado. Pensa-se que a aquecer-se ao sol (recuperando das profundezas geladas) ou talvez a respirar uma água mais rica em oxigénio, ou ainda a pedirem a aves e outros peixes que os limpem de parasitas (lembro-me de ver, ao largo do Canadá, um peixe-lua à tona de água rodeado de cagarras). Também a função dos saltos que dão fora de água é incerta, mas é quando saltam que se tornam mais visíveis.

Na Berlenga nota-se que este ano choveu cedo e bem. Solo verde e pelo menos já quatro espécies muito floridas, incluindo numerosas viboreiras (Echium rosulatum davaei) – subespécie endémica das Berlengas de flores roxas e grandes – e por toda a parte erva-vaqueira (Calendula suffruticosa), uma espécie de malmequer de belíssimas flores amarelas. 

Cagarrinhas, nascidas no final de julho, estão agora gordas e cheias de penas e penugens. Espreitam, pelas entradas estreitas dos ninhos, o azul do céu e do mar lá fora, o roxo e o amarelo das flores, as lagartixas que passam, as estrelas noturnas: a que é que será que ligam (se é que ligam)? Ainda falta um mês de paciência e dependência, em média, para o primeiro voo solitário, rumo ao Atlântico sul.   

Cria de cagarra no ninho na Berlenga, no início deste mês de Outubro. Foto: Leonor Miranda

O tempo voa na Berlenga. Hora do regresso. Sol envergonhado, mar-de-azeite, intercalado com mar-ao-de-leve-enrugado. Corvos-marinhos, garajaus, mais cagarras. Num breve segundo, um astro prateado no mar, por um segundo apenas, saltou e splash… desapareceu, o peixe, mó, lua. 

Uma só lua encheu o dia.


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, que em 2017 esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.