Foto: Paulo Catry
/

Crónicas naturais: chuva

Início

“Relâmpagos de grandes tempestades na distância iluminam a floresta, o areal e o mar. Só o som das ondas, as tartarugas sobem a praia silenciosas.”

Guiné-Bissau, agosto 2023

Chega-se de Lisboa em pleno verão, tendo circulado pelo Alentejo antes e depois sobrevoado o imenso Sara. Vem-se de olhos sedentos e de alma encarquilhada das notícias do clima … o avião fura uma cortina vaporosa ao descer e deixa ver por entre neblinas um país de rios, mangais, lalas e bolanhas alagadas, florestas, pomares, tudo verde. Um verde escuro, cinzento, a água baça, turva, caminhos de terra vermelha empapada, triste dirão. Ou imensamente refrescante. Deixar os jornais, as crises, encontrar gente com outro espírito.

O pequeno centro de Bissau esvazia-se em agosto, a maioria dos restaurantes e esplanadas fechados, ao final do dia transeuntes rarefeitos, mesmo quando não chove e não é o caso agora. Há uma hora deu-se início a um dilúvio que prossegue ininterrupto. O impacto sonoro dos trovões sente-se como uma pancada no peito. Tiros de artilharia, o ronronar que se segue é suave e calmante por comparação. 

Crocodilo selvagem (Crocodylus suchus) numa pequena zona húmida em plena baixa de Bissau. Foto: Paulo Catry

Nuvens brancas, cinzentas, ardósia, chumbo. Todas as nuvens e vento. A cidade perde protagonismo perante os elementos. Baldios luxuriantes, árvores sacudidas gotejam bátegas, crocodilos verdadeiros navegam numa charca em plena baixa central. Lembro-me de numa noite contarmos cinco ou seis espécies de relas e sapos a cantarem numa única grande poça na via pública, bem no centro da capital – a “Praça”, como lhe chamam aqui. 

O trabalho de campo decorre em ilhas desabitadas dos Bijagós. Sem gente e sem luz artificial. Quem não se afasta da civilização não se apercebe da luz que as estrelas dão. Numa noite de lua nova, mesmo com o céu completamente coberto de nuvens e sem astros visíveis, debaixo de chuviscos, vê-se o suficiente para distinguir as copas das palmeiras e das cabaceiras1, os pequenos grupos de tarrafes2 que crescem no litoral, as rochas de laterite, a praia clara, uma tartaruga-marinha pendurada na ponta do seu rasto gravado na areia até à próxima maré alta.

Nuvens de tempestade sobre os Bijagós. Foto: Rui Rebelo

Chuva, chuva, chuva. A pouco e pouco as diferentes mudas de roupa vão-se molhando e durante vários dias não há uma nesga de sol para as secar. Resta vestir os calções já ensopados. Até os banhos… o Atlântico quente na pele, em contraste com a precipitação fria e o vento do exterior. Com os olhos ao nível da água, fica-se rodeado de gotas grossas que caem no mar, fazendo saltar outras gotas que sobem dois centímetros, milhares de esferas de prata a flutuar acima das ondas. 

Ao final de um dia de chuva ininterrupta começa uma emergência de térmitas-aladas que vindas da floresta sobem em rota oblíqua atravessando o acampamento. Observo durante alguns minutos, espantado de ver como as asas finas e translúcidas podem voar através da cortina de água. A luz fraca do fim do dia desvanece-se filtrada pelas nuvens espessas. É já na penumbra que saio do meio da vegetação e quando chego à praia apercebo-me de que as gaivinas-pretas Chlidonias niger deram também pelo evento e estão a caçar as térmitas em voo mesmo no limite da areia e da rebentação. São umas trinta. Geralmente passam e pescam mais ao largo. Mas apesar da luz difusa e da chuva e do vento, detetaram a oportunidade. Aves que na Europa são dulçaquícolas, em África exclusivamente marinhas, agora temporariamente aéreas como andorinhas.

Centro de Bissau. Foto: Paulo Catry

O telefone-satélite, a única comunicação disponível, está com uma falha: esqueceram-se de “carregar saldo” com a naturalidade habitual daqui. Estamos completamente isolados até ao dia do regresso, o mar deserto de embarcações. 

Demoro-me sentado numa cadeira na praia ao entardecer, os múltiplos cinzentos a mudarem de cor até à escuridão. Relâmpagos de grandes tempestades na distância iluminam a floresta, o areal e o mar. Só o som das ondas, as tartarugas sobem a praia silenciosas.

Chuva, chuva, chuva… e depois sol! 

Trepadeira espontânea Gloriosa superba em flor numa praia na época das chuvas. Foto: Paulo Catry

Hoje o céu abriu, sol radioso, o verde brilha e o mar recupera o óbvio azul. Sol escaldante, vamos secar tudo para mais logo molhar tudo outra vez. Bentana3 pescada por entre as rochas da praia, frita, com arroz de feijão e muita malagueta. Cantos de pássaros, tempo de ninhos e de flores, de conversas e risos. Tempo di tchuva sabi. Alívio da canícula do mundo. 

1 Também conhecidas por embondeiros ou baobabs Adansonia digitata

2 Mangais

3 Peixes Sarotherodon melanotheron da família Cichlidae


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.