Oceanos. Foto: Mobibit/Pixabay

Áreas marinhas protegidas: “É fundamental levar a sério a proteção do oceano”

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Investigadores portugueses participaram na criação do Guia mundial de Áreas Marinhas Protegidas, uma ferramenta que avalia a eficácia destas zonas para proteger os oceanos e sugere como as podemos melhorar. A Wilder falou com Emanuel Gonçalves, administrador e coordenador científico da Fundação Oceano Azul.

O Guia de Áreas Marinhas Protegidas (MPA Guide, em Inglês), publicado a 10 de Setembro por uma equipa internacional de 42 investigadores num artigo na revista Science, resultado de 10 anos de trabalho, faz o ponto de situação das áreas marinhas protegidas no planeta. Hoje, só 3% do oceano está totalmente protegido; a meta é chegar a 2030 com 30%. Disponível para todos neste site, o Guia, que teve o apoio também da Fundação Oceano Azul, mostra o que estamos mesmo a conseguir conservar, o que não funciona e o que é preciso fazer para ter sucesso.

WILDER: O que é o MPA Guide e para que foi feito?

Emanuel Gonçalves: O Guia de Áreas Marinhas Protegidas (MPA Guide), que também teve o apoio da Fundação Oceano Azul, é um instrumento de avaliação que resume a mais recente informação científica para ajudar a proteger o oceano. Permite, desta forma, sintetizar de forma clara os mecanismos de planeamento, designação, implementação, avaliação e monitorização da proteção do oceano. Fornece aos gestores, decisores e a toda a sociedade uma ferramenta essencial para clarificar o que estamos a conseguir efetivamente proteger com os diferentes tipos de áreas marinhas protegidas.

Este Guia surge da necessidade de clarificar o que se entende por uma área marinha protegida, quais as condições para que estas áreas funcionem e que resultados se podem esperar dependendo do nível de proteção atribuído pela regulamentação e também pelo grau de implementação das medidas, bem como quais as condições necessárias para assegurar o seu funcionamento.

Está estruturado em quatro componentes principais.

O primeiro é o nível de proteção de cada área marinha protegida. Este nível de proteção tem quatro classes: proteção total – quando todas as atividades extrativas são excluídas; proteção alta – quando apenas se permite formas de pesca tradicional sustentável e de baixo impacto e se minimizam os restantes impactos no meio marinho; proteção ligeira – quando já se permite níveis de impacto superior e formas de pesca com mais impacto e; proteção mínima – quando ainda se podem observar alguns benefícios de conservação, mas esses são limitados e os impactos no ambiente são mais significativos. A ciência mostra-nos que são os níveis de proteção total e alta que permitem alcançar os maiores efeitos ecológicos da proteção e que permitem a recuperação da natureza.

O segundo componente é o estado de implementação das áreas marinhas protegidas onde se distinguem quatro fases distintas: proposta – quando a intenção de a criar foi anunciada publicamente; designada – quando se encontra já estabelecida num instrumento legal; implementada – quando existem planos de gestão, meios humanos e financeiros e uma governação efetiva com envolvimento das partes interessadas; ativamente gerida – quando existem igualmente uma monitorização efetiva e revisão periódica das regras com o objetivo de alcançar de forma plena os objetivos de conservação planeados. Apenas áreas marinhas protegidas implementadas e ativamente geridas podem funcionar.

O terceiro são as condições necessárias para que a proteção seja efetiva. Muitas vezes ignora-se elementos essenciais para o sucesso das áreas marinhas protegidas como sejam o envolvimento das comunidades, os compromissos políticos de longo termo, um financiamento estável e sustentável, a tomada de decisões com base na informação científica que permita uma gestão adaptativa, a criação de mecanismos de resolução de conflito, a vigilância eficaz, entre outros.

Finalmente, o quarto componente são os resultados que se podem esperar das áreas marinhas protegidas. Sabemos que esses resultados dependem das componentes anteriores, nomeadamente que apenas devemos esperar benefícios da proteção se as áreas estiverem implementadas ou ativamente geridas e que os benefícios ecológicos e, logo, sociais e económicos, se observam principalmente nas áreas com proteção total ou alta.

W: Quais as principais razões para que as Áreas Marinhas Protegidas não estejam a funcionar bem? Serão as mesmas em Portugal e no resto do mundo?

Emanuel Gonçalves: Umas das razões pelas quais as áreas marinhas protegidas tardam em ser vistas como um instrumento fundamental para proteger o oceano, prende-se com os diferentes conceitos sobre o que se entende por proteção. Diferentes entidades, regiões e países usam o mesmo termo para graus de proteção muito diferentes, o que origina confusão na sociedade sobre o que se pretende proteger. Por exemplo, uma reserva marinha pode ser vista como uma zona totalmente protegida ou como uma zona onde se permite pesca.

Um outro problema é que a esmagadora maioria das áreas marinhas protegidas permitem diferentes atividades extrativas, desde logo a pesca, muitas vezes com uma intensidade elevada. Assim, o grau de proteção atribuído a estas áreas é ligeiro ou mínimo, não permitindo, como tal, alcançar a recuperação dos sistemas marinhos. A razão principal para este resultado é a dificuldade em lidar com a exclusão da pesca e em garantir os mecanismos necessários para compensar os pescadores por perdas económicas que possam surgir, no curto prazo, da implementação destas áreas.

Mais generalizado é o problema da implementação. A maioria destas áreas não tem planos de gestão, equipas dedicadas, financiamento atribuído, monitorização regular, vigilância efetiva, uma governação eficaz nem o envolvimento dos interessados. Como tal, não está em condições de funcionar. Este é um problema global, que se verifica também em Portugal, e que urge resolver. O Guia das Áreas Marinhas Protegidas fornece o aconselhamento necessário para promover áreas marinhas protegidas que funcionem.

W: O que se pode começar a fazer de diferente? O que sugere o MPA Guide?

Emanuel Gonçalves: É fundamental levar a sério a proteção do oceano dado que a ciência nos mostra a escala e urgência do desafio. Estamos a ficar sem natureza, a degradar o oceano à escala global, e não estamos a conseguir inverter essas tendências de degradação. Por outro lado, temos um instrumento que pode ajudar a responder a esses desafios, as áreas marinhas protegidas, mas esse instrumento está a ser utilizado de forma deficiente.

Sabemos que as áreas marinhas protegidas são o melhor instrumento para proteger e recuperar a natureza no oceano, mas que para que funcionem têm de estar fortemente ou totalmente protegidas e corretamente implementadas. Para isso são precisos recursos. É necessário agregar os poderes públicos para que a conservação se torne uma prioridade, capacitar a administração para a correta implementação destas áreas, envolver a comunidade na sua designação, garantir formas de governação inclusivas e partilhadas, canalizar fundos e medidas para mecanismos de compensação por perdas e de reestruturação da atividade económica, implementar mecanismos de financiamento sustentável e continuado, assegurar uma gestão ativa e adaptativa, desenhar planos de monitorização adequados.

Por exemplo, a Fundação Oceano Azul em conjunto com um conjunto de parceiros, entregou ao Governo português uma proposta para uma área marinha protegida no Algarve, o Parque Natural Marinho do Recife do Algarve – Pedra do Valado, e na construção deste processo, levou em conta os diferentes elementos do Guia das Áreas Marinhas Protegidas, fornecendo ao Governo uma lista das ações necessárias para garantir a efetiva implementação desta área marinha protegida.

O Guia das Áreas Marinhas Protegidas concretiza de uma forma estruturada tudo o que é necessário garantir para se conseguir a efetiva proteção do oceano através das áreas marinhas protegidas. Claro que se torna igualmente essencial implementar formas de exploração do oceano que sejam sustentáveis e resolver o problema do excesso de pesca e dos impactos da poluição no oceano como um todo.

W: Portugal tem 72 Áreas Marinhas Protegidas. Foram criadas para proteger que espécies ou habitats?

Emanuel Gonçalves: As 72 áreas marinhas protegidas que existem em Portugal foram criadas com objetivos muito diversos. Existem áreas destinadas à proteção de sistemas costeiros – como é o caso do Parque Marinho Professor Luiz Saldanha no Parque Natural da Arrábida ou do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina -, à proteção de montes submarinos, como por exemplo a Reserva Natural dos Ilhéus das Formigas nos Açores, à proteção de espécies em perigo de extinção ou endémicas (que só existem no país), como a Reserva Natural das Ilhas Desertas, na Madeira, que tem como um dos seus principais objetivos a proteção da foca monge.

Essas 72 áreas marinhas protegidas não incluem as áreas da Rede Natura 2000. A Rede Natura é o instrumento de implementação das Diretivas Comunitárias Aves e Habitats e dirige-se à proteção de espécies ou habitats específicos. Por exemplo, existem áreas dirigidas à proteção de espécies de golfinhos, de aves marinhas ou de pradarias marinhas. Mas a maior parte destas áreas ainda não tem planos de gestão e alguns dos que existem não são adequados para alcançar os objetivos propostos.

W: As Áreas Marinhas Protegidas sem pesca só abrangem 0,001% do mar português. Onde estão essas áreas de protecção total? E aí a conservação tem funcionado?

Emanuel Gonçalves: É verdade que a proteção total é residual em Portugal. E é necessário alterar esta situação. Só proibindo as atividades extrativas é possível o funcionamento adequado dos ecossistemas e a proteção eficaz da natureza. Nos poucos exemplos que existem não é ainda clara a sua eficácia. Por exemplo, no Parque Marinho Professor Luiz Saldanha na Arrábida, existe uma pequena área de 4km2 de proteção total. Nesta área observam-se alguns benefícios de conservação, nomeadamente com o aumento do número e tamanho de espécies com interesse comercial. Mas estes resultados são limitados face à pequena dimensão desta área e ainda a atividades ilegais que se continuam a observar com frequência. Outras pequenas áreas existem também nos Açores (por exemplo no Faial, Graciosa ou São Miguel), mas não existem muitos estudos que demonstrem a eficácia dessa conservação. Um caso de sucesso com estudos de suporte é o do Banco Condor nos Açores onde se tem desenvolvido uma extensa investigação pela Universidade dos Açores, que demonstra os efeitos positivos da proteção em espécies comerciais.

W: Nas restantes Áreas Marinhas Protegidas é possível pescar sem limites?

Emanuel Gonçalves: Depende das situações. Existem sempre limites quer pela regulamentação de pesca quer pelas restrições das regulamentações das áreas sob proteção. No entanto, face nomeadamente à ausência de planos de gestão, por vezes as atividades permitidas dentro das AMP pouco diferem do exterior. É nestas circunstâncias que o Guia de AMP permite avaliar que estas áreas ainda não estão implementadas ou que o seu grau de proteção é baixo.

W: Na sua opinião, quais as AMP que temos mesmo de classificar como protecção total, para chegarmos aos 10%? E o que é preciso para implementar áreas de protecção total?

Emanuel Gonçalves: A Estratégia Europeia da Biodiversidade requer que os Estados-membro protejam 30% do seu mar até 2030 como pelo menos 10% em áreas de proteção estrita, ou seja sem atividades extrativas. Estas áreas de proteção total devem incidir sobre um conjunto de valores naturais que se encontram identificados como prioritários: por exemplo, as fontes hidrotermais e os montes submarinos são ambientes do mar profundo e oceano aberto a que se deve dar prioridade. Também os corais de profundidade e os bancos de esponjas ou mesmo as planícies abissais contêm sistemas únicos que importa proteger. Mais junto à costa existem bancos de coral vermelho, pradarias marinhas, sapais, recifes rochosos e outros ambientes importantes que importa incluir numa rede nacional de áreas protegidas e atribuir regimes de proteção total. A responsabilidade de classificação dessas áreas compete, no continente, à autoridade nacional de conservação da natureza, o ICNF e, em zonas mais ao largo, em articulação com a DGRM. Nas Regiões Autónomas, compete às respetivas autoridades regionais.

W: Há recursos humanos e financeiros para manter e gerir as AMP?

Emanuel Gonçalves: As situações são diversas, dependendo da região que consideramos. No continente existem equipas centralizadas de gestão e recursos partilhados entre a proteção terrestre e marinha, sendo claro que os recursos não são suficientes. Faltam também mecanismos financeiros adequados, estáveis e atribuídos em função dos objetivos de conservação de cada área, para além dos restantes mecanismos de sucesso apontados no Guia.

W: No início do ano disse à Wilder que “em Portugal é urgente implementar uma estratégia para uma rede de áreas marinhas protegidas eficaz e de nível de protecção elevado”. Estão, ou não, a ser dados passos nesse sentido?

Emanuel Gonçalves: Penso existirem sinais positivos de estarem a ser dados passos concretos nesse sentido, aguardando-se ainda a constituição dos mecanismos operacionais que permitam levar a bom porto a consolidação dessa estratégia, a sua definição com base no conhecimento científico existente, e a dotação dos recursos necessários para que ela seja eficaz.

W: O que se pode fazer para restaurar os ecossistemas marinhos? Que tipo de medidas?

Emanuel Gonçalves: Aqui é preciso fazer ainda um caminho que necessita de bastante trabalho. Por um lado, é preciso inventariar qual o estado de conservação dos habitats. Por outro, é necessário planear formas de restauro marinho e estabelecer prioridades para esse restauro. Depois encontrar as equipas técnicas e os financiamentos necessários e atuar na dimensão legislativa a fim de garantir que após as intervenções os ecossistemas recuperam e regeneram as suas funções. Algumas prioridades são os sapais, pradarias marinhas, recifes e florestas de corais (quer pouco profundos, quer de profundidade) ou montes submarinos. Por outro lado, estes objetivos de restauro devem incluir a recuperação das populações de espécies comerciais e espécies protegidas como os meros ou os cavalos marinhos.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.