Cientistas analisam os morcegos vistos pelos humanos: temidos ou desejados?

Foto: Adrià López-Baucells

Um número especial da revista Journal of Ethnobiology dá a conhecer uma série de estudos científicos dedicados ao tema das inter-relações entre morcegos e humanos, num mundo em rápida mudança.

Desde há muito que humanos e morcegos partilham as mesmas paisagens, por vezes as mesmas casas. Por todo o mundo são conhecidas mais de 1.400 espécies de morcegos. E estes mamíferos alados, diferentes de todos os outros, têm uma presença vasta no folclore e nas artes.

“Quando os primeiros hominídeos deram os primeiros passos, os morcegos já tinham explorado os céus escuros há tempo suficiente para irradiarem em direcção a uma diversidade espantosa e colonizarem a maioria dos habitats onde hoje são encontrados”, afirma Ricardo Rocha, investigador do CIBIO-InBIO – Centro de Pesquisa em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Universidade do Porto), um dos co-editores deste número especial dedicado ao tema “Etnobiologia dos Morcegos”.

Morcego Cardioderma cor dentro de uma habitação no Quénia. Foto: Adrià López-Baucells

Mas ainda assim, apesar de provavelmente terem coabitado em cavernas e terem servido como alimento – como ainda acontece hoje – “estes mamíferos na sua maioria noctívagos, rápidos voadores e reservados eram provavelmente tão enigmáticos para os ancestrais dos humanos como são para a maioria de nós hoje em dia”, nota este cientista, num comunicado enviado à Wilder.

Assim, os leitores da revista são transportados “numa viagem pelo mundo para explorar as inter-relações entre morcegos e humanos” através de sete estudos de etnobiologia que se focam na região da Ásia-Pacífico (como este artigo de acesso livre), Escandinávia, Madagáscar, Namíbia, Camboja e a ilha das Flores (Indonésia Oriental).

É possível ficar a saber “muitas das diferentes maneiras em que os morcegos têm estado representados em culturas humanas ao longo do tempo e do espaço”, acrescenta Álvaro Fernández-Llamazares, outro co-editor, investigador na Universidade de Helsínquia, na Finlândia. 

Morcego-orelhudo-cinzento (Plecotus austriacus) e entrar no mosteiro Sant Pere de Rodes, na Catalunha. Foto: Adrià López-Baucells

No artigo de introdução ao número especial (com acesso livre), por exemplo, ficamos a saber que certas culturas – em especial no Sudeste Asiático, China e Japão – associam estes animais à sorte e à boa fortuna e a eles recorrem como totens espirituais. Já no México, há vários grupos indígenas que os consideram “mensageiros do submundo e importantes símbolos de fertilidade”.

O objectivo principal da revista, disse Ricardo Rocha à Wilder, é “ajudar a construir sinergias entre o conhecimento científico internacional, as prioridades de conservação e valores culturais locais, que em conjunto podem promover um mundo melhor para os humanos e para os seus companheiros nocturnos de longo prazo, os morcegos”.

Uma vez que a etnobiologia se debruça sobre as formas “como as comunidades humanas interagem com o mundo natural”, pode contribuir para a construção de “estratégias culturalmente apropriadas” no que respeita à gestão das relações entre humanos e morcegos. Tanto para ajudar a diminuir possíveis riscos relacionados com doenças zoonóticas, como na contribuição para a conservação destes animais.

Artefacto Chinês da Dinastia Qing (1723-1735), com motivo representativo de morcego. Foto: Ricardo Rocha

Estigma está a aumentar

O investigador sublinha que “o estigma negativo contra os morcegos está a reganhar forças” devido à pandemia de Covid-19, pelo que esta revista celebra também “as muitas maneiras” pelas quais estes mamíferos “contribuem para o bem-estar humano e a saúde dos ecossistemas e os múltiplos serviços de ecossistema que providenciam numa escala local e global”.

Entre os estudos agora publicados está por exemplo um sobre as relações entre humanos e morcegos na ilha de Madagáscar, em África, que inclui os resultados de mais de 100 entrevistas a membros de dois grupos étnicos que vivem em torno do Parque Nacional de Ranomafana, considerada “uma das áreas protegidas com maior biodiversidade em Madagáscar”.

Raposas voadoras (Pteropus rufus) a serem vendidas num mercado em Madagáscar para consumo humano. Foto: Adrià López-Baucells

“Conseguimos identificar que cerca de 10% dos entrevistados já tinham consumido morcegos e que cerca de 20% usaram guano de morcego como fertilizante. Cerca de um quinto das pessoas entrevistadas conhecia tabus culturais que inibem a caça e o consumo de morcegos, e a maioria considerava-os não perigosos”, indicou à Wilder Ricardo Rocha, um dos co-autores deste estudo.

Mas nem todos pensavam assim: “Alguns dos informantes mencionaram que os morcegos podem transmitir doenças e reclamaram do mau cheiro e do ruído associado a colónias de morcegos existentes em casas e prédios públicos”, acrescenta o mesmo responsável. Ainda assim, salienta, “cerca de 25% dos entrevistados conseguiram identificar representações culturais de morcegos no folclore local, entre elas uma história muito popular na qual morcegos frugívoros são apresentado como heróis por ter usando as suas asas para salvar a floresta de um incêndio gigante”.

Factos curiosos

E na verdade, à medida que os cientistas ganham novos conhecimentos sobre este grupo de animais, “algumas conotações menos positivas associadas aos morcegos estão aparentemente a começar a dar origem à curiosidade e vontade de apoiar sua conservação”.

Exemplos? Descobriu-se há pouco tempo que o morcego-rabudo (Tadaria teniotis), existente em Portugal, consegue atingir velocidades superiores a 130 quilómetros por hora. Sabe-se hoje, também, que os morcegos-vampiros – grupo de espécies da América Central e do Sul – “constroem relações cooperativas análogas à amizade humana compartilhando refeições com indivíduos não aparentados”.

A celebração do crescimento deste apoio à conservação pode ser vista, exemplifica o investigador, quase todos os dias no estado americano do Texas. Ali, na cidade de Austin, “até 100.000 visitantes testemunham o emergir de cerca de 1,5 milhões de morcegos que habitam debaixo da ponte Ann W. Richards Congress Avenue, no centro de uma cidade com cerca de um milhão de habitantes.”


Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.