Investigadores surpreendidos por polvos que dão “murros” a peixes

No Mar Vermelho, em 2018 e 2019, uma equipa de investigadores, entre os quais o português Eduardo Sampaio, foi surpreendida ao encontrar polvos a dar “murros” a peixes, quando caçavam peixes mais pequenos e crustáceos.

Já são bem conhecidas da comunidade científica as incríveis capacidades dos polvos para se camuflarem e para resolver problemas.

Agora, estas criaturas inteligentes e complexas voltaram a surpreender com um comportamento totalmente novo para a Ciência.

No Mar Vermelho (em Israel durante um mês em 2018 e no Egipto durante dois meses em 2019), diferentes polvos da espécie grande-polvo-azul (Octopus cyanea) foram observados a dar “murros” ou “socos” a peixes com os quais colaboravam para caçar.

Estes comportamentos foram observados a uma profundidade média de 15 metros.

Os investigadores – do Laboratório Marítimo da Guia do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (MARE), pólo da Ciências da Universidade de Lisboa, e do Max Planck Institute of Animal Behavior – descrevem aquele comportamento como um “movimento explosivo e directo com um braço”, para deslocar e afastar peixes.

O comportamento foi observado quando os investigadores filmavam a caça caça colaborativa entre polvos e peixes.

Esta caça conjunta parece ser benéfica tanto para polvos como para peixes, porque se torna mais facil de encurralar presas.

“Testemunhámos algo inesperado que era o polvo afastar violentamente um dos parceiros de caça utilizando um movimento rápido de um braço”, disse à Wilder Eduardo Sampaio, estudante de doutoramento em Biologia (ramo Etologia) e primeiro autor do artigo que dá conta deste trabalho publicado recentemente na revista Ecology.

Segundo o investigador, este movimento é dirigido a um peixe específico, não é aleatório.

Os “murros” foram filmados em sítios diferentes do Mar Vermelho e em grupos com composições diferentes de peixes, “o que indica que os ‘murros’ têm um papel nestes grupos inter-específicos”.

Eduardo Sampaio explica que nestes grupos de caça, “o polvo procura presas entre rochas e nos corais, enquanto os peixes rondam o território à sua volta e a coluna de água. Isto torna estes grupos eficientes no sentido em que, se a presa (por exemplo um peixe ou crustáceo mais pequeno) fugir do polvo, os peixes estarão à espera, e se a presa fugir dos peixes para dentro de corais/frechas na rocha, o polvo poderá apanhá-la”.

Mas por que razão estes polvos dão “murros” ou “socos” nos peixes?

De acordo com o investigador, há “situações em que o polvo usa o ‘murro’ para ter acesso a uma presa, retirando essa oportunidade ao peixe”. “Nestes casos, o mecanismos ecológico onde assenta a acção pode ser simples competição (principalmente com peixes que normalmente não fazem parte destes grupos inter-específicos), ou um mecanismo de ‘sanção’, em que o polvo impõe um custo a um parceiro que tenta retirar uma presa ao polvo, enquanto colhe benefícios para ele mesmo (obtém a presa).” 

Eduardo Sampaio recorda que “estes grupos, apesar de colaborativos, são baseados em interesse próprio. Isto é, são muito raras as provas de altruísmo entre espécies diferentes em que, por exemplo, um polvo ou um peixe está a caçar para ‘dar’ mais presas ao(s) parceiro(s)”.

Mas existem outras situações em que os polvos dão estes “murros”, sem ser para ficar com uma presa. “O polvo pode estar a expressar uma resposta imediata ao facto de o peixe ter obtido uma presa que seria para ele (ou seja, está a impor um custo, apesar de ele próprio pagar um preço por isso), ou então poderá estar a “castigar” esse peixe, de forma a que este tenha acções colaborativas nas interacções seguintes.”

No entanto, sublinhou Eduardo Sampaio, “estes cenários teóricos são especulativos e necessitam ainda de estudo quantitativos de forma a perceber como é que o comportamento do peixe é alterado por ‘levar um murro’ do polvo”. 

Até agora, a única espécie de polvo que faz caça colectiva – em que o polvo segue também os peixes – é o Octopus cyanea, no Mar Vermelho, Austrália e ilhas do Índico. “Esta espécie é tropical e não existe em Portugal.”

O artigo – que tem como co-autores Martim SecoRui Rosa e Simon Gingins – é o resultado de um trabalho de campo sobre as interações entre polvos e peixes em caça cooperativa realizado no âmbito de um projecto financiado pela National Geographic e pela organização de mergulho PADI.

Os investigadores acreditam que este trabalho traz “uma nova perspectiva sobre a história natural do polvo” e mostra que “este invertebrado, apesar de solitário, consegue adaptar-se a contextos sociais e beneficiar com isso, o que poderá ser importante para o estudo da plasticidade cognitiva e inteligência”.

O estudo “aumenta a literatura conhecida e a definição de complexidade comportamental que conhecemos nos polvos”, explicou Eduardo Sampaio à Wilder. “Estamos a falar de um animal que é solitário durante toda a sua vida (excepto quando acasalam, e depois morrem) que parece ter desenvolvido ferramentas para lidar com situações sociais inter-especificas que podem ser altamente complexas, visto ter que lidar com peixes com múltiplas estratégias de caça (uns mais oportunistas e outros mais colaborativos) e lidar com isso.”

Para o futuro, Eduardo Sampaio e os colegas estão a planear fazer “estudos quantitativos para compreender se, por exemplo, o polvo tem maneiras diferentes de lidar com peixes que sejam mais oportunistas e outras maneiras de lidar com peixes mais colaborativos. E também perceber como é que num grupo, os polvos escolhem quem seguir. Será pelo número de peixes? Pela actividade demonstrada? Existem várias questões muito interessantes que nos podem ajudar a perceber mais sobre a inteligência e cognição utilizada nestas interacções”.


Saiba mais.

Assista aqui às imagens captadas no Mar Vermelho.


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Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.