Mais de 2.000 abutres em perigo crítico de extinção envenenados na Guiné-Bissau

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O maior evento de envenenamento em massa de abutres no mundo aconteceu este ano na Guiné-Bissau. O alvo foi o jugudé (Necrosyrtes monachus), espécie emblemática naquele país e em Perigo Crítico de Extinção, alertam investigadores numa carta publicada na revista Science.

Numa carta publicada a 16 de Outubro na revista científica Science, um grupo internacional de investigadores e conservacionistas, incluindo guineenses e portugueses, alertaram para “o mais letal evento de envenenamento intencional de abutres do mundo”, escrevem em comunicado enviado à Wilder.

Abutre envenenado, com a cabeça removida para uso na medicina tradicional. Foto: Mohamed Henriques

No início de 2020 foram encontrados mais de 2.000 jugudés mortos nas regiões de Bafatá e de Gabú, no Leste da Guiné-Bissau.

O jugudé (Necrosyrtes monachus) é um pequeno abutre do Velho Mundo, natural da África Subsaariana, que se alimenta sobretudo de carcaças de animais mortos e de resíduos encontrados próximo das habitações humanas, matadouros, etc.

Mas as suas populações têm vindo a desaparecer.

Jugudé, Necrosyrtes monachus. Foto: Ana Coelho

Hoje é uma espécie Criticamente em Perigo devido ao envenenamento indiscriminado, captura para o comércio associado à medicina tradicional, caça, perseguição, electrocussão e perda e degradação do seu habitat.

No início do ano, a população local alertou as autoridades guineenses responsáveis pela conservação da biodiversidade e pelos serviços veterinários e, apesar da falta de recursos e das dificuldades inerentes à pandemia da Covid-19, foram enviadas várias equipas para o terreno.

Abutres envenenados empilhados. Foto: Hamilton Monteiro

Os abutres terão sido envenenados propositadamente para remover as suas cabeças para alimentar o comércio ilegal destinado à utilização de várias partes do seu corpo (cabeças, asas, unhas e patas) em práticas de feitiçaria em diversos países da África Ocidental.

“Centenas de cadáveres destes abutres encontravam-se sem cabeça, empilhados e intencionalmente escondidos sob arbustos”, explica Mohamed Henriques, luso-guineense doutorando do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e primeiro autor do artigo.

As suspeitas de envenenamento intencional foram depois confirmadas pela Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa, através das necrópsias realizadas a alguns cadáveres recolhidos no local. “As análises de toxicologia demostraram, inequivocamente, que a causa de morte foi o envenenamento por metiocarbo, um inseticida vendido sob o nome comercial de Mesurol, que é, entre outros usos, frequentemente aplicado como controle de lesmas/caracóis e que foi recentemente banido na Europa devido à sua toxicidade para a vida selvagem”, indica José Pedro Tavares, director da Vulture Conservation Foundation, um dos co-autores deste artigo.

Diversos habitantes locais confirmaram ainda que foram avistados indivíduos a colocar os iscos envenenados para atrair os abutres.

Cerca de 30% dos abutres de África morrem envenenados, alertam os autores na carta à revista Science. Na África Ocidental, em apenas 30 anos, desapareceram 60 a 70% das populações das várias espécies de abutres.

Jugudé, Necrosyrtes monachus. Foto: Ana Coelho

“O jugudé está classificado como em Perigo Crítico de Extinção na Lista Vermelha das Espécies Ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza, a última categoria antes do nível de extinção. A Guiné-Bissau alberga mais de um quinto da população mundial desta espécie, sendo atualmente um dos países mais importantes para a conservação da espécie a nível mundial”, refere outro dos autores, Paulo Catry, investigador e Professor auxiliar do MARE/ISPA-Instituto Universitário. 

Na carta agora publicada é realçado que “este evento catastrófico representa o desaparecimento de mais de 1% da população mundial desta espécie”, escrevem os autores.

“Em vastas regiões de África, os abutres desempenham uma função essencial para os humanos e para o funcionamento dos ecossistemas”, explica Mohamed Henriques. “Na Guiné-Bissau, bem como em grande parte da África Ocidental, os jugudés são responsáveis por eliminar uma grande parte do lixo orgânico nas cidades e nas vilas do país, constituindo autênticas brigadas de saneamento na manutenção da limpeza das ruas. O seu papel é assim decisivo para evitar a proliferação de doenças e dos seus possíveis vetores de transmissão, como cães de rua e ratazanas que se alimentam do lixo urbano. Sem estes abutres, a saúde pública poderá estar em sério risco.”

Jugudé, Necrosyrtes monachus. Foto: Ana Coelho

Os investigadores consideram que este “é um duro golpe para a conservação dos abutres, e que é necessária intervenção urgente”.

Acções de sensibilização junto das comunidades locais e das autoridades nacionais relativamente à importância na conservação dos abutres, a necessidade da aplicação e reforço das leis contra o envenenamento da vida selvagem e o aumento no controlo do comércio ilegal transfronteiriço de partes de abutres e outros animais para medicina tradicional estão entre as acções identificadas como as mais prioritárias.

À comunidade internacional, os autores apontam a responsabilidade de apoiar os países africanos para desenvolver e implementar planos de conservação para evitar, enquanto ainda é possível, a extinção destas aves.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.