Foto: Arturo de Frias Marques

Como a natureza “inventa” novas maneiras de ser: o urso polar

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O que torna os ursos-polares tão únicos? Algumas respostas estão na informação genética destes animais fascinantes, conta-nos Pedro Andrade, investigador a trabalhar em biologia evolutiva no CIBIO-InBIO (Universidade do Porto).

Em Julho passado, um estudo alertou para a probabilidade de um declínio demográfico acentuado nos ursos polares (Ursus maritimus), e que caso as alterações climáticas sigam no percurso atual, pelo ano 2100 todas as populações desta espécie poderão estar em sério risco de se tornarem inviáveis ou desaparecerem.

Por estes dias, este tipo de notícias sobre o maior mamífero carnívoro terrestre são já infelizmente comuns, tornando o urso-polar o maior símbolo dos perigos das alterações climáticas para a vida selvagem. Numa altura em que o futuro desta espécie parece seriamente comprometido, podemos aproveitar para olhar para o passado para perceber como esta espécie surgiu e o que torna estes emblemáticos animais tão especiais. 

A história do urso-polar está intimamente ligada à do urso-pardo (Ursus arctos), seu parente mais próximo e provável ancestral. Com recurso à análise de genomas de indivíduos de ambas as espécies, estimou-se que a divergência entre estas se deu entre cerca de 480 e 340 mil anos atrás, provavelmente durante uma interrupção dos períodos glaciares que assolaram o nosso planeta no passado recente. É provável que nessa altura algumas populações de ursos-pardos se tenham aventurado para latitudes mais altas, tendo ficado depois isolados das demais após o período glaciar subsequente.

Parentes próximos mas bem diferentes – desde que os ursos-polares surgiram, a partir de populações ancestrais de urso-pardo (há cerca de 480 a 340 mil anos), evoluíram uma série de características para se adaptarem ao modo de vida peculiar no Ártico. Fotos: Arturo de Frias Marques e Robert F. Tobler (CC BY-SA 4.0).

Mas mesmo após a divergência principal, estas duas espécies ainda se cruzaram ao longo de muitos milhares de anos. É possível sabermos isto porque os genomas de ambas carregam em si fragmentos de DNA uma da outra. Curiosamente, encontram-se sobretudo fragmentos de DNA de urso-polar em algumas populações de urso-pardo, provavelmente o resultado da incorporação de algumas populações periféricas de polar no pool genético dos pardos.

Apesar do (relativamente) curto tempo de divergência, a ecologia e fisiologia de ambas as espécies é bastante diferente. Afinal de contas, as populações primordiais de urso-polar tiveram que se adaptar rapidamente aos climas mais frios. A capacidade de adaptação de uma população a novas condições depende da variação genética, que pode ser pré-existente (se a população original tiver variantes a baixas frequências, que depois se tornam vantajosas quando as condições mudam) ou surgir de novo, quando mutações genéticas criam variação. É provável que ambos os processos tenham contribuído para esta rápida adaptação.

Mas o que torna o urso-polar tão único? Todos sabemos das diferenças na cor, alimentação e fisiologia, mas por baixo da “pele”, como surgem estas adaptações únicas ao seu estilo de vida ártico? Mais uma vez, a informação genética consegue dar-nos algumas pistas. Os padrões de variação encontrados ao longo dos genomas conseguem indicar-nos quais as porções que foram alvo de seleção natural em tempos mais recentes – zonas por exemplo bastante diferenciadas do urso-pardo, e com diversidade reduzida (a seleção tende a eliminar a variação que não é vantajosa). 

A seleção natural é uma das forças que faz com que variantes genéticas benéficas (a vermelho) num determinado contexto ambiental se tornem mais comuns ao longo do tempo. Se a pressão seletiva se mantiver, estas variantes genéticas benéficas (já existentes na população, ou resultantes de novas mutações) aumentam de frequência na população, substituindo outras variantes na mesma posição do genoma. Adaptado de Pleunipennings (CC BY-SA 4.0).

Nos ursos-polares, há indícios de seleção natural em genes associados à coloração e a vários processos fisiológicos, entre os quais em genes associados ao metabolismo de lípidos, o que é um reflexo direto do processo de adaptação ao novo estilo de vida glaciar. A principal presa destes ursos são as focas que habitam os mares do Ártico, cujo corpo é rico em gorduras. Consequentemente, os níveis de colesterol no sangue dos ursos-polares são bastante altos, sem que não tenham os correspondentes problemas cardíacos que tanto afetam as pessoas com valores elevados de gorduras no sangue. 

Este truque metabólico (que infelizmente nos ilude) parece ser causado, entre outros fatores, por uma série de mutações funcionais no gene APOB, que está envolvido no transporte de colesterol no sangue em mamíferos. Ainda não é muito claro como é que estas mutações afetam o metabolismo deste gene nos ursos-polares, mas é provável que modifiquem a proteína resultante de forma a promover a remoção de colesterol do sangue – em humanos, níveis altos desta proteína estão associados à acumulação de colesterol no plasma, e consequentemente ao aumento de risco cardíaco.

Durante a sua evolução, o urso-polar teve que se adaptar a um ambiente gelado e hostil, e por isso alterou de forma dramática não só o seu aspeto exterior como o seu funcionamento mais básico. Este processo de adaptação foi rápido, mas deu-se a uma escala de centenas de milhares de anos – as pressões que a atividade humana está a impor ao nosso clima criarão alterações abruptas no sentido contrário numa escala de centenas, ou até mesmo dezenas de anos. Face a este cenário, é muito improvável que a capacidade de adaptação das populações cada vez mais reduzidas deste emblemático mamífero seja suficiente por si só para garantir a sobrevivência da espécie.


Referências:

Liu, S., Lorenzen, E. D., Fumagalli, M., Li, B., Harris, K., Xiong, Z., … & Wang, J. (2014). Population genomics reveal recent speciation and rapid evolutionary adaptation in polar bears. Cell, 157(4), 785-794.

Molnár, P. K., Bitz, C. M., Holland, M. M., Kay, J. E., Penk, S. R., & Amstrup, S. C. (2020). Fasting season length sets temporal limits for global polar bear persistence. Nature Climate Change, 1-7.


Pedro Andrade trabalha como investigador em biologia evolutiva no CIBIO-InBIO, Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéricos (Universidade do Porto), sobretudo com projetos relacionados com a genética de animais selvagens e domésticos. 

Leia também a borboleta branca e o DNA parasita, do mesmo autor.


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