Albano Soares. Foto: D.R.

Naturalistas: Das libélulas às abelhas, Albano Soares fez do estudo dos bichos o seu lugar no mundo

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Taxonomista sem canudo, este entomólogo português dedica hoje os seus dias a identificar e a aprofundar o conhecimento sobre diferentes insectos, em especial as muitas centenas de abelhas que habitam em Portugal.

Foi quando chegou aos 40 que Albano fez a mudança que o conduziu onde está agora, a trabalhar no que sonhava desde sempre. Andava há muito sem saber como aqui chegar, até que as palavras de um anarquista francês lhe deram coragem e largou a segurança de um emprego para a vida toda.

Hoje, passados 15 anos, este entomólogo português dedica uma boa parte dos dias aos “bichos” – como lhes chama – e à taxonomia, a identificar e a estudar insectos e os ecossistemas dos quais fazem parte, um pouco por todo o país. E não se pense que é tarefa fácil. Só em Portugal, por exemplo, conhecem-se hoje quase 800 espécies diferentes de abelhas, grupo no qual Albano se tem vindo a especializar. Desde 2012, trabalha como técnico do Tagis – Centro de Conservação das Borboletas de Portugal, uma ONG que se dedica à investigação e à divulgação de todos os insectos em Portugal. 

Por exemplo, está dois dias em Oeiras numa acção de monitorização de insectos; daí, abala para a região do Fundão, para acções de monitorização; segue-se Viana do Castelo, para uma sessão de formação ligada ao registo de abelhas e à ciência cidadã; pouco depois, é altura de partir para Coimbra, para uma reunião de projecto na universidade… Ao longo da Primavera e do Verão, o ritmo é sempre assim corrido, para ele e para outros entomólogos, muitos quilómetros de estrada e sempre a somar registos e observações, que os dias apesar de longos passam depressa. O Outono e o Inverno, quando os bichos pouco se vêem, são mais descansados. É quando se montam as colecções entomológicas, se ordenam catálogos e se faz muito do trabalho de escritório, conta à Wilder.

Numa acção dedicada às borboletas nocturnas. Foto: DR

“O Albano, com as suas fotografias e com o seu sistema de trabalho, é muito metódico na identificação e divulgação dos insectos”, sublinha Eva Monteiro, que trabalha com ele na associação Tagis, desde 2010, e sublinha a dedicação com que trabalha. “Somos chamados para diversos tipos de actividades e para fazer coisas diferentes, mas o Albano aproveita sempre para ver se consegue observar mais abelhas. É super focado.”

“Esta é a missão da vida dele, é para isso que ele está aqui”, diz, acrescentando que vê o colega de trabalho também como um comunicador dos insectos.

Mas esta “compulsão” para registar e fotografar tudo e identificar as espécies – em especial as abelhas – tem outro lado da moeda: “Ele é um bocado obstinado, quando está mau tempo fica zangado, é quase como que uma afronta pessoal”, sorri Eva Monteiro, que admira a persistência do amigo. “Ele está a fotografar abelhas desde 2018; muitas delas não tinham fotografia, em especial espécies da Península Ibérica. E não é só registar as abelhas, mas também as plantas onde são observadas, onde vão buscar pólen e néctar…”

Renata Santos, que também trabalha no Tagis, concorda que Albano é “muito teimoso” e destaca também a “excelente memória” do colega de trabalho. É isso que lhe permite identificar inúmeros insectos diferentes e perceber também, se isso for possível num relance, se são machos ou fêmeas. Outros pormenores essenciais à identificação de uma espécie, como o número ou o formato dos veios nas asas de uma abelha, encontram-se apenas ao microscópio, num trabalho que lhe exige muita persistência.

A primeira paixão

Mas para aqui chegar, a esta vida preenchida com o que gosta de fazer, Albano deu muitas voltas. Nascido em 1968, cresceu em Paranhos, “uma freguesia do Porto que na altura era muito rural”, recorda. Andava “sempre fascinado com animais” e tinha um cenário propício mesmo ao pé de casa, situada “numa zona com lameiros e muitos baldios, húmida o ano inteiro”. Aliás, o local onde passou a infância tinha tanta água que “não é à toa que existia lá o campo [de futebol] do Salgueiros”, árvores que nascem nas margens dos rios. 

“Adorava as aves, os anfíbios e os répteis. Desde muito novo gostava muito de zoologia e dos vertebrados em geral, que foram a minha primeira grande paixão”, lembra este portuense. 

Lagartixa exótica Podarcis sicula, em Lisboa, 2016. Foto: Albano Soares

Certo é que Albano, ao contrário de muitos outros colegas da escola primária – “como se chamava na altura o Primeiro Ciclo” – não passava o tempo livre a correr atrás de uma bola, mas sim a brincar com animais.  “Nunca soube jogar futebol, só aprendi a andar de bicicleta com 15 anos, não tinha grandes skills sociais. Então, refugiava-me aí.”

Desde esses primeiros anos de escola, identifica outra característica importante para o que faz hoje: “Gosto de fazer gavetas, gosto de ver nas coisas o que têm em comum e o que é que algumas coisas não têm em comum e de coleccionar esses conhecimentos.”

Mas o acesso ao conhecimento era muito mais difícil naquela altura, na década de 1970. Não existiam guias disponíveis sobre a biodiversidade de Portugal, nem sequer Internet onde procurar os nomes correctos das espécies. Os pais e os avós, com quem vivia, compravam-lhe tudo o que encontravam disponível sobre animais, mas por vezes com resultados ao lado: “A literatura que existia era referente ao Centro e ao Norte da Europa, Inglaterra, Alemanha, França, países que estudavam a fauna”, recorda este especialista. O que acontecia é que muitos anfíbios que encontrava, por exemplo, “não encaixavam com as espécies dos livros que tinha, porque realmente não eram essas espécies.”

Apesar de tudo, esses materiais já ajudavam a saciar alguma da fome de conhecimento. E também as cadernetas de cromos. “O Panorama Zoológico é uma das primeiras colecções de que me lembro. Os outros miúdos faziam colecções de cromos de futebol ou de carros, eu fazia colecções de animais emblemáticos da Terra, desde o gorila à sanguessuga”, lembra. “Era uma colecção de cromos muito didática.”

Mas Albano não se ficou apenas pelos livros e pelas explorações no campo. Ali à entrada da pré-adolescência, pelos 9 ou 10 anos, começou a trazer a natureza para dentro de casa. Mais concretamente, para a sala de estar. “Comecei a fazer os meus próprios aquários e terrários para criar os bichos que via nos lameiros. Tinha muitos anfíbios, criava girinos, via as suas metamorfoses e fazia pequenos ecossistemas dentro dos aquários, com plantas”, relata.

É claro que a convivência entre bichos e humanos, lá em casa, ia sofrendo alguns percalços, admite. “Várias vezes tivemos explosões de mosquitos e outras coisas que eu não conseguia controlar.” Mas apesar disso, a família chegada sempre o apoiou, mesmo os pais trabalhando como operários e pertencendo a uma classe social baixa.

Em contrapartida, embora pensasse que mais tarde gostaria de trabalhar no que já fazia quando estudava os animais ali à volta, não havia qualquer expectativa de mais tarde seguir para a universidade. Simplesmente, não estava no horizonte. “Se me perguntassem o que gostaria de ser quando crescesse, o mais provável seria dizer cientista, naturalista, alguma dessas coisas”, recorda, mas havia um grande “mas”: “Não sabia como”.

“Naquela altura, onde eu vivia, terminava-se o sétimo ano e ia-se trabalhar, ou então seguia-se o liceu, que era o equivalente ao nono ano de agora”, descreve o entomólogo do Tagis. “E depois muito poucos iam até ao 12º ano, que foi onde cheguei.” 

De trabalho em trabalho

No final, terminada a escola, “já com 18 ou 19 anos”, entrou no mundo do trabalho. “Fiz mil e uma coisas, tive mil e um empregos.” Ao mesmo tempo que dedicava “todos os tempos livres ao estudo da fauna”, começou por trabalhar em supermercados, a promover e a representar algumas marcas. Meses depois passou para o escritório de uma companhia de navegação, um ano mais tarde saltou para a Sonae, onde se juntou a um projecto de informática, e algum tempo depois fartou-se e foi para outro sítio. Chegou trabalhar como segurança, na Prossegur, mas não se deixou ficar. “Também não tinha nada a ver comigo.”

Depois de algum tempo neste ritmo, “um ano e meio a dois anos em cada trabalho”, chegou finalmente a um porto seguro, uma óptica na rua portuense de Santa Catarina onde, “apesar de não ter jeito nenhum para aquilo”, o acolheram como se fosse família. Ali, ficou cerca de uma década. Mas mais uma vez, reconhece, “não era aquilo que queria fazer na vida”. Foi por esta altura, entre os 30 e os 40 anos, que começou a perceber que podia transformar a paixão pelos bichos num sustento. 

Com 30 e poucos anos, na óptica onde trabalhava. Foto: DR

Entretanto, ainda a trabalhar na óptica da rua de Santa Catarina, a primeira vez que a vida lhe mostrou outros horizontes ficou-lhe para sempre gravada na memória. Foi em 2000, durante uma manifestação do 1º de Maio, no Porto, uma frase atirada por um anarquista francês que seguia no final da marcha, de bandeira preta em punho. “Começámos por acaso a falar e ele dizia-me algo como, ‘Je n’ai jamais travaillé’, ‘eu nunca trabalhei na vida’, e eu fiquei muito admirado. O que é isto? O que faz ele?”. 

“Ao trabalhar para outros estás a servir o capitalismo, a aumentar o ciclo de subserviência!”, insistia o francês, que lhe explicou que ele próprio produzia os sapatos que depois vendia. “Eu nunca tinha conhecido alguém assim, um sapateiro anarquista, culto, com ideias… E era artesão. E não trabalhava para ninguém nem tinha ninguém a trabalhar com ele.” Mas apesar de nessa altura descortinar que havia outra vida possível, Albano achava que não tinha como ali chegar, pois “não fabricava algo que pudesse vender”.

Foi então, em conversa com uma amiga, que percebeu que podia começar a fotografar fauna em Portugal. “Havia uma ou duas revistas de ambiente, mas a nível de imagens era tudo muito parco, muito mau”, recorda. “Tinha a sensação de que as pessoas que faziam aquelas fotografias não conheciam os bichos.” 

Começou pelos répteis e anfíbios e mais tarde passou às libélulas, que já conhecia desde que em pequeno construía aquários para os sapos e as rãs. “Colhia sedimento para as plantas e, muitas vezes, nesse sedimento vinham ovos com larvas de libélulas que nasciam e me comiam os girinos.” 

A fotografar uma libélula, no Parque das Nações, em Lisboa. Foto: Wilder
libélula de corpo vermelho pousada num pequeno ramo
Libélula-das-nervuras-vermelhas (Sympetrum fonscolombii). Foto: Albano Soares

Foi quando andava a fotografar estes insectos aquáticos que lhe veio à memória uma “velha questão da infância”: “Que espécie é esta?”, começou a interrogar-se. Albano descobriu nessa altura que em Portugal havia entre 60 a 70 espécies de libélulas conhecidas para a Ciência, mas ninguém sabia bem por onde andavam. E percebeu também, muito rapidamente, que os insectos desse grupo “eram todos, na sua essência, identificáveis por imagem”. 

Com a ajuda de um guia recém-publicado sobre as libélulas da Europa, começou então a usar todo o tempo livre que tinha, quando não estava a trabalhar na óptica da rua de Santa Catarina, para conhecer melhor estes insectos. “Todos os tempos livres, fins-de-semana, férias, em todos os sítios logisticamente possíveis, porque eu não tinha carro, tal como continuo a não ter.” Em 2005 decidiu então avançar para a escrita de um guia, que em 2013 publicou com outro entomólogo, Ernestino Maravalhas: “As libélulas de Portugal”.

A tempo inteiro

Entretanto, aquela vida dupla começava a tornar-se num peso, porque “já não conseguia trabalhar”. “Não me revia naquele estilo de vida.” A meses de fazer 40 anos, em 2008, decidiu despedir-se do trabalho para se dedicar a tempo inteiro aos bichos, apoiado durante dois anos pelo subsídio de desemprego.

Foi investindo cada vez mais na sua formação e foi ficando mais conhecido como especialista nas libélulas portuguesas, ajudado por duas redes sociais dedicadas à fotografia que já existiam na altura, o Olhares e o Flickr. E um dia, em 2010, quando o subsídio de desemprego estava a chegar ao fim, foi contactado por duas entomólogas da associação Tagis, Eva Monteiro e Patrícia Garcia Pereira, que o convidaram para trabalhar num projecto de criação de pequenos percursos dedicados à natureza.

Algum tempo depois, Albano começou a trabalhar no Tagis, como técnico de entomologia e é nessa qualidade que tem colaborado ao longo dos últimos anos em vários projectos, incluindo o Livro Vermelho dos Invertebrados e o Spring.

Em 2018, mais uma vez em parceria com Ernestino Maravalhas, lançou o guia “Anfíbios e Répteis de Portugal”. E quando sentiu que conhecia já tudo sobre as libélulas portuguesas, “que são poucas espécies” e por isso “já não havia quase nada de novo para aprender”, começou a pensar nas abelhas, pois são muitas mais e há falta de especialistas nacionais neste grupo. Só na Mata de Alvalade, que fica em Lisboa, já encontrou desde então mais de uma centena de espécies diferentes.

Com outros membros da equipa do Livro Vermelho dos Invertebrados. Foto: DR

Hoje em dia, diz contente, há ainda “muitas espécies de abelhas” que tem disponíveis para investigar e aprender, mas para já consegue identificar “mais de metade” das cerca de 750 espécies conhecidas para Portugal. O que acontece cada vez mais, aliás, é que passa a vida a ver insectos em todo o lado. “Estou a ver um arbusto e dou por mim a olhar para os bichos que lá estão; estou numa exposição e de repente está uma borboleta nocturna na parede.”

Nos próximos anos, este entomólogo planeia também escrever novos livros, incluindo um dedicado às abelhas mais comuns de Portugal. E basicamente, continuar a fazer mais do mesmo. É que para Albano, estudar os “bichos” não é mais do mesmo, nem é uma “seca”. Ele encontrou o seu lugar no mundo.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.