Foto: maxime raynal/Wiki Commons

Na serra de Carnaxide, em busca de polinizadores com o projecto SPRING

Portugal acolhe um novo projecto internacional que quer descobrir o que está a acontecer aos insectos na Europa. A Wilder acompanhou uma equipa de investigadores da associação Tagis e de voluntários e conta-lhe o que está a ser feito.

Maio está a chegar ao fim e a natureza anda em alvoroço na serra de Carnaxide, um dos maiores espaços naturais na periferia de Lisboa, situado entre a vila que lhe dá o nome e os limites das freguesias de Queluz e Alfragide.

De manhã cedo, Albano Soares e Cândida Ramos, entomólogos da associação Tagis, chegam ao topo da serra com alguma dificuldade, num carro que segue em equilíbrio precário por um trilho com buracos da chuva. Cá fora, ouvem-se rouxinóis e chapins escondidos por ervas altas e pelas sebes pontiagudas dos carrascos. Ali ao lado, soa um “tuit, tuit, tuit” com a cadência dos ponteiros de um relógio, de uma fuinha-dos-juncos que voa perto.

Percorremos a pé um caminho onde as malvas pintam a vegetação rasteira de roxo e cor-de-rosa, intercaladas com chicórias de um lilás suave e com as flores brancas e minúsculas das cenouras-bravas. Mais à frente, destacam-se umas flores muito pequeninas e redondinhas quase coladas ao chão, em tom rosa vivo, conhecidas pelo nome comum de saudades. Por todo o lado, cardos enfeitados de picos exibem grandes pompons brancos, amarelos e violeta, alguns erguidos a mais de metro e meio do chão. É a Primavera no seu esplendor.

Flores na Serra de Carnaxide. Foto: Wilder

Mas hoje não viemos à serra em busca de aves e plantas. Acompanhados pelos dois investigadores e por um grupo de voluntários, estamos à procura de insectos polinizadores: borboletas diurnas, moscas-das-flores e abelhas. Maio é o último mês de monitorização no âmbito do SPRING, um projecto científico europeu que se iniciou em Abril de 2022. Em Portugal, o trabalho de campo realiza-se em seis locais diferentes, incluindo o município de Oeiras, o Parque Natural da Serra de São Mamede, no Alentejo, e o arquipélago dos Açores.

SPRING é a palavra inglesa para Primavera, a estação dos insectos, mas no caso deste projecto trata-se também de uma sigla, que traduzida para português significa “Reforçar a recuperação dos polinizadores através de indicadores e monitorização”. Um dos principais objectivos é testar métodos rigorosos, nos quais possam colaborar especialistas e cidadãos comuns por toda a União Europeia, que ajudem a avaliar a situação dos insectos nos Estados-membros – nos quais habitam 482 espécies de borboletas diurnas, 2.051 espécies de abelhas e quase um milhar de espécies de moscas-das-flores.

A natureza em alvoroço, no final de Maio. Foto: Wilder

No espaço europeu, esses três grupos de espécies representam alguns dos principais polinizadores, assim chamados porque transportam os grãos de pólen entre as flores de uma mesma espécie, e são por isso essenciais para a reprodução dessas plantas. Acredita-se que na Europa 78% das espécies de plantas silvestres com flor dependem dos serviços desses insectos. Estes são importantes também para polinizar muitas culturas agrícolas, incluindo árvores de fruto e vegetais como o tomate e a curgete, e por isso necessários para a produção de alimentos.

Em risco de extinção, mas onde?

Nos últimos anos, no entanto, têm surgido notícias alarmantes. Segundo estimativas publicadas pela União Internacional para a Conservação da Natureza, entidade que avalia o risco de extinção de milhares de espécies, 37% das abelhas silvestres e 31% das borboletas que habitam na Europa estão a sofrer um decréscimo das suas populações. E a nível mundial o cenário não é melhor, com alertas para o colapso deste grupo. Todavia, a informação recolhida pelos cientistas é ainda pouca, incerta e desigual, e não permite um retrato coerente do que está a acontecer.

Em resposta, a Comissão Europeia decidiu avançar com uma estratégia para se obterem mais dados sobre o que se passa, e assim nasceu o SPRING. Desde Junho do ano passado, recorrendo a investigadores e a voluntários, as equipas do projecto por toda a Europa realizam acções de monitorização um dia por mês, avaliam como estão esses métodos a funcionar e registam a variedade e quantidade de borboletas, abelhas e moscas-das-flores observadas. Desta forma, testam o que no futuro deverá ser o Esquema de Monitorização de Polinizadores da União Europeia, proposto em 2021 por um grupo de trabalho de 23 especialistas, a pedido de Bruxelas.

O problema é que o tempo hoje não está de feição para monitorizar insectos. “Está muito vento, muita nebulosidade e as temperaturas são baixas”, resume Albano Soares, 54 anos, ligado à associação Tagis, uma das entidades que colaboram com o SPRING em Portugal. Para piorar as coisas, por cima da serra – cujo ponto mais alto se ergue apenas a 211 metros acima do nível do mar – está a formar-se uma leve camada de nuvens que funciona como uma tampa, aumentando a pressão atmosférica e contribuindo para que muitas espécies fiquem escondidas.

Albano Soares, entomólogo do Tagis. Foto: Wilder

Albano está acompanhado por Cândida Ramos, 29 anos, e por uma dezena de estudantes de biologia e de outras áreas de ambiente, ligados a um novo programa da Câmara de Oeiras, Ecos da Natureza, iniciado em Março. O objectivo é que esses voluntários participem em várias acções no concelho, incluindo o combate a plantas invasoras, a plantação de espécies nativas e monitorizações como a de hoje, explica Filipe Afonso, 27 anos, que trabalha na Divisão de Gestão Ambiental do município.

“Vamos arriscar e avançar com a monitorização”, decide Albano, que nos últimos anos se tem vindo a especializar na taxonomia e identificação das abelhas – uma tarefa desafiante, tendo em conta que em Portugal são já conhecidas mais de 700 espécies deste grupo. Entusiasmar e ajudar a formar futuros taxonomistas é aliás outro objectivo do projecto SPRING, uma vez que há cada vez menos destes profissionais em muitos países europeus, incluindo Portugal.

Investigadores e voluntários do SPRING, na serra de Carnaxide. Foto: Wilder

Pelo terreno, a equipa distribui várias armadilhas, conhecidas por ‘pan traps’ ou “pratos”, como lhes chamam os investigadores. Estes pequenos recipientes brancos e redondos, parecidos com as embalagens descartáveis de comida, têm o fundo pintado por cores comuns na natureza, atraentes para os insectos: amarelo vivo, azul, rosa forte. A ideia é que sejam idênticas a todas as outras armadilhas para insectos usadas nos outros países da Europa, no âmbito do SPRING.

Dentro de cada recipiente, Albano e Cândida colocam água com algumas gotas de detergente, que serve para remover a tensão superficial do líquido e deixar que os insectos atraídos pelas cores vivas se afoguem. Só isso permitirá que não voem e sejam encontrados quando forem removidas as armadilhas, dentro de seis horas, para serem analisados e identificados.

Por vezes passam por nós borboletas e uma ou outra abelha-carpinteira, num voo rápido e rasante, mas de resto, de insectos vê-se pouco.

À caça de borboletas

Albano procura nas flores que já sabe serem as preferidas de determinadas abelhas e vai encontrando algumas. Cuidadosamente, entre os dedos da mão, segura agora uma pequena abelha escura de antenas compridas e penugem branca, para ver a que espécie pertence. Um macho de Eucera notata. “Vai à tua vida, tiveste sorte, não és rara”, diz ao insecto deixando-o ir, em vez de o transferir para um dos copos de plástico e tampa amarela que tem sempre à mão.

Macho da espécie de abelha Eucera notata. Foto: Wilder

Entretanto, chega a hora de a equipa se dividir em grupos para fazerem transectos, outra das metodologias que estão em testes. Trata-se de pequenos percursos lineares, pré-definidos, que os investigadores e voluntários envolvidos no SPRING devem percorrer uma vez por mês para monitorizar os insectos polinizadores que são alvo do projecto.

O grupo que acompanhamos, que vai em busca de borboletas, é liderado por Cândida Ramos. Atrás, seguem Filipe Afonso e três estudantes envolvidas no programa Ecos da Natureza, cada um armado com uma rede entomológica de cabo comprido, resistente mas leve. Estas ferramentas, que terminam numa espécie de grande capuz de um tecido semelhante ao tule, muito rendilhado, fazem parte do ‘kit’ de qualquer entomólogo em trabalho de campo. Manejá-las não é fácil como parece, mas com golpes rápidos e certeiros, o grupo vai apanhando quase tudo o que vê.

Cândida Ramos, à “caça” de abelhas com uma rede entomológica. Foto: Wilder

“Faz-me lembrar o jogo do Sponge Bob com alforrecas”, graceja Carlota Mamede, 23 anos, depois de mais uma pequena corrida atrás de uma borboleta esvoaçante. Carlota está a estudar Engenharia da Energia e Ambiente na Universidade de Lisboa e participa entusiasmada nesta “caça”. Uma das espécies que consegue capturar com a rede é a borboleta-maravilha, transferida para um pequeno frasco de plástico transparente para ser observada pelo grupo. “Está ainda verdinha, vê-se que saiu há pouco tempo do casulo”, comenta Cândida, antes de libertar o insecto de asas vistosas.

Apesar do vento fresquinho, ao longo dos 500 metros do transecto vêem-se mais borboletas, quase todas rapidamente identificadas. É o que acontece com a belargus, que tem a face superior das asas em azul vivo, e com a borboleta suli, de cores mais discretas – daí outro nome comum, castanhinha-dos-carvalhos – cujas lagartas se alimentam das folhas do carrasco. Por ali voa também a Thymelicus acteon, chamada pelo nome comum de douradinha-escura. Esta última pertence à família de borboletas diurnas Hesperiidae, conhecidas também como “cabeçudas” por terem a cabeça grande em relação ao corpo, explica a entomóloga do Tagis.

Uma borboleta-cleópatra (Gonepteryx cleopatra) na rede entomológica, segundos antes de ser libertada. Foto: Wilder

Mais tarde, concluídos todos os transectos, o grupo encontra ainda uma borboleta de asas brancas e padrão preto axadrezado, noutro local da serra. É uma Melanargia lachesis, espécie que segundo Albano anuncia “o fim da Primavera”, pois vê-la significa que está a chegar uma época do ano em que diminui a pique o número de polinizadores observados. 

“As datas que conhecemos de início e fim das estações são apenas conceitos, pois na realidade, isso depende de cada região”, nota o investigador. “Enquanto que no Algarve a Primavera termina mais cedo, pois começa a ficar calor no final de Abril, aqui na região de Lisboa esta estação está agora a chegar ao fim, e no Norte costuma prolongar-se até aos últimos dias de Junho”, explica.

Borboleta da espécie Melanargia lachesis. Foto: maxime raynal/Wiki Commons

Saber para decidir

Já para a conclusão do SPRING, faltam ainda alguns meses. Incluindo a análise dos resultados das monitorizações e as diversas acções de formação para identificação de insectos e formação de novos taxonomistas, o projecto deverá terminar em 2024. Em Portugal, a coordenação está nas mãos do CFE – Centro de Ecologia Funcional, da Universidade de Coimbra, que além da associação Tagis tem outros cinco parceiros: o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas, a associação Biopolis/CIBIO, o cE3c – Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais da Universidade de Lisboa, o município de Oeiras e a Universidade dos Açores.

Se esta fase piloto for finalizada com sucesso e Bruxelas avançar para uma nova etapa, o Esquema de Monitorização de Polinizadores da União Europeia deverá começar a ser seguido nos Estados-membros a partir de 2027, ano após ano, ajudando a perceber o que está a acontecer com estes insectos por toda a Europa.

As futuras acções de monitorização, se tudo correr bem, vão depender não só de investigadores mas também de cidadãos comuns interessados em colaborar com com a ciência, pelo menos para algumas espécies mais fáceis de identificar. Com a informação que for obtida, prevê a Comissão Europeia, haverá uma base mais sólida para a tomada de decisões políticas viradas para a conservação da biodiversidade.

Quanto à serra de Carnaxide, é incerto se nessa altura haverá condições para que os censos de polinizadores regressem ao topo deste espaço natural. É que ao longo do percurso, não temos encontrado só insectos, flores e outra vegetação. Um pouco ao longe, descortinamos também gruas e edifícios em construção, incluindo um grande bloco rectangular de apartamentos que parece já pronto a estrear. O barulho das máquinas e dos martelos intromete-se no chilrear dos rouxinóis. É a cidade que avança, rasgando o campo e a serra.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.