Entrevista com Nuno Sá: A vida de um “cameraman” subaquático

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Responsável pelas imagens dos tubarões-baleia do documentário “A Ilha dos Gigantes”, que estreou a 20 de Junho na RTP1 e RTP Play, Nuno Sá descreve como é esta profissão de se ser um apaixonado pelos mares e espécies marinhas. Um testemunho feito nas vésperas da Conferência dos Oceanos da ONU, de 27 de Junho a 1 de Julho em Lisboa.

WILDER: O que faz?

Nuno Sá: Sou ‘cameraman’ subaquático. Trabalho principalmente para produções internacionais de História Natural, as chamadas blue-chip (normalmente documentários sobre megafauna carismática em estado selvagem, com imagens espectaculares, sem a presença de pessoas e evitando questões controversas). São histórias subaquáticas de comportamento animal, da vida selvagem, em que não existem intervenientes humanos.

Hoje em dia, 90% do meu tempo é passado a trabalhar para produções da Netflix, BBC, National Geographic e por aí afora. E sempre que tenho tempo tento desenvolver documentários sobre a vida marinha portuguesa para dar a conhecer aos portugueses a nossa riqueza e biodiversidade marinhas.

W: Onde e quando começou?

Nuno Sá: Não tive, e continuo a não ter (risos), um rumo muito definido em termos de carreira. Tem sido muito ir ao sabor das oportunidades mas principalmente motivado por uma paixão pelo mar, por descobrir a sua vida marinha.

Sou formado em Direito na Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa, e só tive contacto com a vida marinha durante a minha licenciatura, período durante o qual tirei o meu primeiro curso de mergulho. A seguir, a primeira viagem de mergulho que fiz foi à Ilha das Flores, nos Açores. Foi muito aí que começou a crescer este meu interesse pela vida marinha e por explorar os oceanos.

E realmente nessa altura, há mais de 20 anos atrás, os Açores ainda estavam muito por explorar. Em termos subaquáticos havia imensas oportunidades para encontrar histórias novas e comportamentos desconhecidos. De maneira que, ao longo do meu curso de Direito, fui sendo sempre influenciado por produções tipo Blue Planet e pelos documentários de Cousteau. Foi sempre crescendo em mim o sonho de um dia me tornar fotógrafo ou videógrafo subaquático, mas acima de tudo o objectivo de viver uma vida em contacto com o mar.

Quando acabei a licenciatura achei que realmente o sítio que tinha visitado nos Açores era o sítio onde poderia atingir esse objectivo de viver uma vida de aventuras constantes de descoberta da nossa vida marinha. Achei que a ilha das Flores talvez fosse um pouco pequena demais e então decidi ir viver para a ilha de São Miguel onde vivi durante 11 anos.

Foi aí que tudo começou. Comecei com a fotografia como hobby para mostrar à família e aos amigos esta nova vida, estas primeiras aventuras a descobrir o mar dos Açores. Tive imensa sorte, arranjei logo um emprego numa empresa de observação de cetáceos e comecei também a estudar Biologia Marinha. Fui levando cada vez mais a sério a fotografia até que em 2008 decidi tornar-me fotógrafo subaquático a tempo inteiro.

Em 2013 acabei por trocar a fotografia pelo vídeo, muito por causa da tecnologia ter evoluído e permitir que as câmaras fotográficas da altura fizessem vídeo também mas acima de tudo porque o meu objectivo máximo era ser videógrafo subaquático, profissão que dá oportunidade de ir mais longe, a sítios mais remotos.

W: O que o faz apaixonar-se pelo mundo natural e a querer dedicar-lhe a sua vida? Houve algum momento decisivo?

Nuno Sá: Nos Açores fui-me apercebendo que tinha o privilégio de viver num sítio com uma riqueza e biodiversidade únicas a nível mundial. E foi crescendo em mim a ideia de que se eu realmente conseguisse estar tecnicamente preparado para fotografar e fazer vídeo, poderia entrar num mercado internacional dessas actividades. Poderia explorar este meu quintal, que na altura eram os Açores, de uma maneira que os outros não poderiam.

E houve vários momentos marcantes para tomar essa decisão. Um deles foi em 2008. Nessa altura tinha acabado de publicar o meu primeiro artigo na revista National Geographic Portugal, tinha acabado de ser premiado pela primeira vez no Wildlife Photographer of the Year, já tinha alguma visibilidade e já começava a fazer as minhas primeiras saídas de mar especificamente para fotografar – tinha comprado um pequeno barco, muito velhinho – e quando tinha tempo e dinheiro saía para o mar para tentar descobrir histórias.

Houve um dia que estava a fotografar um grupo de sardinheiras. As sardinheiras são baleias-de-barbas, filtram água para se alimentar. Aquelas tinham metade da sua boca com as barbas penduradas à superfície a filtrar água, uma coisa excepcional, mesmo em frente da casa onde eu vivia, numa vilazinha chamada Alagoa.

De repente, no meio daquelas baleias, vejo uma barbatana que me pareceu ser não de uma baleia, mas de um tubarão muito grande, pareceu-me ser um tubarão-frade.

E eu, curiosamente, nesse mesmo ano tinha feito parte de um grande projecto de fotografia chamado Wild Wonders of Europe, em que tinha sido contratado para ir fotografar tubarões-frade na Escócia. Tinha andado no melhor sítio do mundo para tubarões-frade mas nunca tinha tido uma fotografia que queria, que era um tubarão-frade de boca aberta.

Foto: Atlantic Ridge Productions

O tubarão-frade é uma espécie filtradora, é o segundo maior tubarão do mundo, pode ter até 8 ou 9 metros de comprimento, e não tinha conseguido a fotografia que eu queria. E realmente aquilo parecia-me um tubarão-frade mas nunca ninguém tinha ouvido falar de tubarões-frade nos Açores.

Então atirei-me para dentro de água e lá estava um tubarão-frade que veio direito a mim de boca aberta. Um tubarão-frade quando abre a sua boca é uma coisa impressionante, cabem vários seres humanos lá dentro. E consegui a fotografia que não tinha conseguido na Escócia.

Isto pôs-me a pensar que realmente não valeria a pena fazer o que todos os outros fotógrafos andavam a fazer, que era tentar ir às Galápagos, à Grande Barreira de Coral, ao Mar Vermelho e fotografar tudo o que eles já andavam a fotografar e que, realmente, o que deveria fazer era explorar aqui o meu quintal nos Açores.

Curiosamente no mesmo ano consegui fotografar, pela primeira vez nos Açores, o tubarão-baleia, que é o maior peixe do mundo, e o tubarão-frade, que é o segundo maior tubarão do mundo. Se consegui ser a primeira pessoa a mostrar dois dos maiores peixes do mundo, queria dizer que havia uma infinidade de histórias por revelar nos Açores. E foi então que tomei essa decisão de ficar pelos Açores e dedicar-me a descobrir e a mostrar aos portugueses estas histórias. E isto levou a que tivesse conseguido entrar no mercado internacional de vídeo subaquático uns anos mais tarde.

W: Como aprendeu a fazer o seu trabalho?

Nuno Sá: Acho que, acima de tudo, tive uma sorte tremenda. Sinceramente, o meu sonho tinha sido sempre ser um videógrafo subaquático, porque no fundo os videógrafos subaquáticos têm mais oportunidades para fazer parte de grandes expedições com muitos meios à sua disposição e ir a sítios mais remotos.

Acabei por comprar uma câmara muito boa, uma câmara profissional de vídeo, e decidi dedicar parte de um Verão a mostrar o melhor que os Açores tinham. Todos os anos, marcas como a BBC, o Discovery Channel e por aí fora vinham aos Açores produzir porque sabiam que era um hotspot de vida no meio do Atlântico.

Se eu conseguisse mostrar que conseguia filmar bem, talvez conseguisse entrar dentro desse mercado e que me contratassem a mim em vez de enviarem equipas de fora.

E foi isso que aconteceu. Por incrível que pareça, no ano seguinte fui contratado pela BBC para fazer uma das histórias do Blue Planet 2 (o Blue Planet 1 foi a série mais icónica de todos os tempos sobre os oceanos, foi vista por mais de mil milhões de pessoas). Como correu bem, contrataram-me para fazer mais algumas e isto era realmente o meu sonho, era fazer parte das mesmas séries que me influenciaram tanto e fazer parte das equipas que iriam influenciar as gerações futuras de jovens preocupados com os nossos oceanos. E entrei no mercado internacional de ‘cameramen’ subaquáticos.

Foto: Atlantic Ridge Productions

Hoje em dia trabalho muito mais fora de Portugal do que cá e já tenho percorrido um bocadinho o mundo todo, desde o Círculo Polar Ártico até às zonas mais quentes do planeta.

Trabalho para produções chamadas landmark series, que são produções de grande dimensão com muitos meios à sua disposição, especialmente da Disney, National Geographic, BBC e Netflix, e que me têm levado de uma ponta à outra do globo.

O que é certo é que foi graças aos Açores que acabei por ficar conotado como uma pessoa que trabalha com espécies pelágicas como baleias e tubarões, e acaba por ser por isso que me contratam pelo mundo fora.

A aprendizagem tem sido muito através do contacto com equipas. Por exemplo, no ano passado estive cinco meses a bordo do navio Ocean Explorer, que é o maior navio de produção de documentários a nível mundial; tem dois submarinos, um helicóptero e um ROVE. Estávamos a fazer uma série para a Disney e National Geographic, realizada pelo James Cameron, que é um realizador de topo de Hollywood, que fez o Titanic e por aí fora. Tínhamos uma grande equipa de filmagens e consegui aprender e partilhar experiências.

E tive experiências incríveis. Tínhamos um submarino só para nós, para a equipa de filmagens. Muitos dos dias tinha que operar um submarino com duas câmaras exteriores que eu operava de dentro do submarino e que filmava o outro submarino onde seguiam os actores. E há umas semanas vim de uma expedição ao Árctico. Têm sido muitas expedições, sempre com equipas grandes em que há muita aprendizagem e partilha de conhecimentos.

W: O que ainda lhe falta fazer?

Nuno Sá: Acho que nunca vão acabar as histórias que gostaria de explorar e sempre que tenho um objectivo que alcanço há sempre outros à espera para o substituir.

Já tenho feito várias histórias no Árctico, como uma das histórias que fiz para o Blue Planet 2, 300 quilómetros acima do Círculo Polar Árctico nos fiordes da Noruega a filmar baleias-de-bossa e orcas a alimentarem-se de arenque.

Nesta altura do ano há uma grande migração do arenque para os fiordes da Noruega e há ali mais arenques do que seres humanos no nosso planeta. É um dos grandes espectáculos da natureza. Recentemente também vim de uma expedição ao Árctico para a Netflix e já estive várias vezes nestas águas.

Mas nunca me contrataram para o Sul. Ir à Antárctica está no topo da lista de experiências que gostaria de ter. Quanto a espécies, gostava de trabalhar com a foca-leopardo, apesar de ser uma espécie que impõe algum respeito e poder ser relativamente agressiva. Esse é um dos meus grandes objectivos, mas há tantos outros.

Foto: Atlantic Ridge Productions

Ainda assim, não viajo por minha iniciativa, viajo para onde sou contratado. Depende de termos a sorte de sermos contratados para os sítios onde mais gostaríamos de ir. Mas tenho tido expedições a sítios a que eu nunca estaria à espera de ir.

Por exemplo, tenho feito algumas histórias no Médio Oriente. Ainda há uns meses vim do Qatar onde estivemos a filmar manatins; estive a filmar num dos maiores lagos do mundo em África, o lago de Tanganica, e vou lá voltar daqui a três semanas para filmar comportamentos incríveis de peixes de água doce que evoluíram de maneira diferente dos de água salgada.

Muitas vezes até são histórias que eu desconhecia completamente, são os pesquisadores destas grandes produções que as encontram e que nos dão a conhecer. Penso sinceramente que haverá sempre mais histórias por contar. Nunca chega ao fim a vontade de descobrir um pouco mais sobre a vida marinha ou sobre os nossos oceanos.

W: Como é o seu dia-a-dia, enquanto documentarista de grandes animais marinhos?

Nuno Sá: Depende muito dos anos. Tenho três filhos, mulher e dois cães, e quando estou em casa passo imenso tempo com eles porque tenho muitas saudades. É muito difícil equilibrar a minha vida pessoal com o meu trabalho, uma vez que grande parte é feito fora de Portugal.

O ano passado terá sido o mais ocupado de todos, em que passei 80% do tempo fora de casa, o que é demasiado. Mas por vezes tenho dificuldade em recusar trabalhar para grandes landmark series ou em sítios remotos a que eu adorava ir.

Devo confessar que na maioria das expedições para que sou contratado iria de bom grado de graça (risos), porque são objectivos de vida e não de carreira ou de trabalho. Mas tento não aceitar expedições com duração superior a um mês e ter sempre entre as expedições pelo menos uma semana em casa para matar saudades da família.

E em casa, muito do trabalho é preparar equipamentos para a próxima expedição, manter a forma física para estar em forma entre expedições e tratar de logística. Cada vez mais as minhas expedições dependem muito de tecnologia, muito equipamento e muitas peças que têm de ter a manutenção feita, desde o mergulho à filmagem.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.