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Crónicas naturais: à sombra dos grifos

Grifo (Gyps fulvus) em voo planado. Foto: Noel Reynolds/WikiCommons

O biólogo Paulo Catry conta-lhe, como se escrevesse num diário pessoal, a sua expedição à terra dos grifos, na margem do rio Erges. Sobre a sua cabeça, um céu de abutres.

Beira Interior, Março 2022

Um dos prazeres da vida é estar sentado à sombra dos grifos que planam lá em cima. Mergulhar no céu. Os abutres elevam-se dormentes ao sabor das correntes ascendentes e carregam-nos os sonhos, altos, com outro alcance. Vemos longe nos olhos deles (os abutres possuem uma acuidade visual fenomenal, como se vivessem de binóculos colados à retina).

Grifo (Gyps fulvus) em voo planado. Foto: Noel Reynolds/WikiCommons

Hoje é diferente, está vento cinzento e rijo. Subi pela margem direita do Erges. Os abutres andavam aflitos com falta de correntes térmicas ascendentes. Têm crias pequenas que não querem esperar pela refeição, por isso voam nas condições mais desfavoráveis. Aproveitam a turbulência do vento nas encostas do rio para absorverem um nadinha de ar ascendente aqui, mais um bocado ali, e subirem por pouco que seja. 

Grifos baixos sobre as colinas, longe dos ninhos, mas sem opção que não fosse aproximarem-se do perigo que imaginam que sou, que todos nós somos, calhou eu estar no caminho do vento do rio. Cheguei a ter sobre a cabeça oitenta grifos de uma vez, bando salpicado de abutres-pretos dispersos, e um casal de britangos em paradas acrobáticas nas fragas distantes. Um céu de abutres.

Existem 22 espécies de abutres no mundo (se não contarmos com o abutre-das-palmeiras, que é um abutre tresmalhado, semi-vegetariano e pescador). Entre as maiores aves voadoras do mundo estão vários abutres, incluindo o lendário condor; o abutre-preto não lhe fica tão atrás assim. Enchem o olho!

abutre-preto em voo
Abutre-preto. Foto: Artemy Voikhansky/Wiki Commons

O que é um abutre, afinal? (um anjo negro, sempre disponível para despojar quem já nada tem?…). Um abutre é um tipo de ave especial. Para além dos abutres, não há mais nenhum vertebrado terrestre no mundo que se tenha especializado completamente em alimentar-se de cadáveres de animais. Hienas, leões, lobos, são mais fortes, correm com os abutres sem dificuldade … só que… quando chegam às apetecidas carcaças, geralmente não encontram mais do que um monte de ossos limpinhos; os abutres comeram tudo, muito antes de qualquer competidor. 

Os estudos demonstram que as possantes hienas ou os sagazes lobos não têm hipótese nesta corrida ganha por quem vê tudo do alto e voa rápido. Por isso é que os mamíferos necrófagos têm que ser também predadores e esfalfar-se a caçar quando preferiam encontrar a mesa já posta. É que os abutres levam quase tudo!

É em Portugal que passo mais tempo a deixar-me sonhar com os abutres, mas é na Guiné-Bissau que com eles trabalho e investigo, de quando em vez. Na Guiné também há grifos de duas espécies, mas os abutres mais comuns são os djugudés (Necrosyrtes monachus), aves urbanas, das cidades e das tabancas, dos portos de pesca. Os djugudés são assim do tamanho e forma de um britango, e muito menos bonitos! Mas fazem-nos voar como os outros abutres. Têm uma cabeça que muda de cor, conforme a disposição, do desbotado ao rosa-avermelhado em menos de um segundo. Os djugudés limpam 4 mil toneladas de lixo orgânico por ano na Guiné-Bissau. São alma das paisagens guineenses.

Os djugudés (Necrosyrtes monachus) são pequenos abutres africanos que vivem em estreita associação com os humanos na África ocidental. Foto: Paulo Catry

Fizemos na semana passada contagens de djugudés em Bafatá e em Gabu (Geba e Nova Lamego, para quem se guia por antigas toponímias), duas cidades do interior. Decréscimos da ordem dos 80 a 90% em apenas 6 anos, colapso, mesmo se numa região limitada (felizmente os djugudés ainda são numerosos na generalidade do país). A causa são envenenamentos em massa, para comercializar patas e cabeças de propriedades ditas mágicas, amuletos, mezinhas. A luta pela sensibilização e a conservação está agora a começar naquele país e inclui estudos*, formação técnica, repressão do comércio ilegal, palestras, cartazes, programas de rádio e de televisão.

A cor da cabeça dos djugudés pode mudar completamente de um segundo para o outro, conforme o estado de excitação da ave. Foto: Paulo Catry

Em Portugal os abutres estiveram por um fio, dizimados pela estricnica destinada aos lobos e por alguma perseguição direta. O abutre-preto chegou a extinguir-se como nidificante. Os grifos confinaram-se à fronteira. Os britangos que nidificavam na Arrábida e em Sintra tornaram-se uma memória distante. Nas décadas finais do século XX estavam quase totalmente desaparecidos.

britango a voar
O britango (Neophron percnopterus) já nidificou um pouco por todo o país, incluindo nas serras de Sintra e da Arrábida, na região de Lisboa. Foto: Artemy Voikhansky/Wiki Commons

Mas nos últimos anos os abutres começaram a regressar, por vezes em força (os britangos migradores ainda estão aflitos, mas resistem, não estão perdidos). A esperança é que, com ajuda, os abutres africanos possam ser conservados também.

Quando regressa o bom tempo, cada molécula do ar aquecido puxa as penas, uma a uma, para cima. As penas primárias compridas, as secundárias, as retrizes, e todas as coberturas das asas, da cauda, do tronco. Mas a cabeça do grifo não pensa no corpo que flutua; a cabeça observa, pondera, analisa. Altitude é sabedoria de horizontes expandidos. A sombra veloz varre o chão, sobe e desce colinas, salta de supetão árvores e penedias, foge-nos da vista. Logo virá o almoço, seguido de dança aérea entre amigos.

* Carneiro et al 2017. Ostrich; Henriques et al 2018. Plos One; Henriques et al 2020. Science


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do ISPA – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais e também publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.