Libélula-de-nervuras-vermelhas (Sympetrum fonscolombii) a descansar numa pausa da migração em Sagres. Foto: Paulo Catry
/

Crónicas naturais: Viajantes de quatro asas

Paulo Catry, professor e investigador do ISPA – Instituto Universitário, oferece-nos vislumbres da natureza que reveste os seus dias. Nesta crónica, fala-nos de pequenos migradores em que muitas vezes nem reparamos, que por estes dias estão em movimento.

Lisboa, 10 Outubro 2021

Outubro é, ainda mais que outros, mês de viajantes. O ar transparente e os dias sem vento fazem contemplar o horizonte com outra fome de distância. Talvez seja a consciência das férias que foram, e do regresso intenso às aulas, que avivam a nostalgia da vida transumante. Há inúmeras aves a chegar, a partir, a passar. Peixes, mamíferos, tartarugas do mar, e hordas discretas de insetos em movimento. 

Entre os migradores invertebrados destacam-se várias espécies de borboletas, de gafanhotos, até de moscardos, mas falemos de libelinhas, é tempo delas. Passou uma agora em frente à janela alta deste prédio em Lisboa. Este outono parecem-me poucas, mas é costume aparecerem por esta época. Guiadas pela linha da beira-rio, acumulam-se, hesitam em atravessar o Tejo. Nalguns anos são mesmo numerosas, observam-se enquanto se espera na fila do trânsito, numa qualquer artéria ribeirinha. Poucos reparam, já se sabe, mas estão lá, e passam. 

Há libélulas anónimas que fazem viagens espantosas, talvez as mais extraordinárias de toda a classe dos insetos. As libélulas são demasiado leves para a tecnologia contemporânea do tracking de pequenos animais. Assim, foi preciso um trabalho de detetive* para permitir concluir que as libélulas da espécie Pantala flavescens migram sazonalmente (em outubro) da Índia, através do Oceano Índico, até à África Oriental (atenção aos distraídos da geografia: esta travessia, passando pelas Maldivas, representa uns 4000 kms sobre o mar!). Movem-se depois, seguindo ventos e chuvas da convergência intertropical, até à África Austral. 

Algumas regressam à Índia mais tarde, em maio. Mas já não são as mesmas. São as filhas ou, mais provavelmente, as netas das primeiras. O ciclo completa-se, mas não é levado a cabo por indivíduos singulares que vão e vêm, como nas aves; é antes uma proeza de linhagens: avós, mães, filhas, netas, uma corrida de estafetas.

As libélulas da espécie Pantala flavescens fazem uma migração de longa distância sobre o Oceano Índico. Foto: Graham Winterflood

Em Portugal, Pantala flavescens é, quando muito, uma espécie acidental (já foi registada nos Açores). Contudo, por esta época, se formos ao cabo Espichel ou a Sagres, é fácil ver aquele que provavelmente é o maior dos migradores europeus de entre os Odonata: a libélula-de-nervuras-vermelhas Sympetrum fonscolombii

Nestes locais privilegiados para a observação de aves migradoras também se concentram as libelinhas. Dias há em que surgem em fluxo contínuo, umas atrás das outras, parecem não ter fim. São indivíduos imaturos, a maioria. 

Estudos na Ásia Central sugerem, de forma ainda preliminar, que as libélulas-de-nervuras-vermelhas poderão migrar alguns milhares de quilómetros naquela região**. 

Mas e as nossas, estas que observamos de passagem no litoral. De onde vêm? A libélula-de-nervuras-vermelhas é comum como reprodutora em Portugal, mas será que há migradores com origens mais distantes? E até onde vão? E regressam ou não? 

Dois pares de asas finas, translúcidas, etéreas, mapas povoados de nervuras nítidas, negras ou coloridas, linhas de vida. Asas de todos os dias, das lagoas e dos pegos, feitas asas de viagem, dos promontórios do mar. Percursos que a ciência não fez por ora senão cismar. Saboreemos então calmamente o ar fresco das manhãs de outubro: está tudo bem, restam ainda rotas migratórias por desvendar. 

*Anderson RC. 2009. Journal of Tropical Ecology

** Borisov SN et al 2020. Ecological Entomolgy


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, na série Crónicas Naturais e também publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.