Vidoeiros e salgueiros… em carros bons cantadores

Todos os meses, o projecto “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”, ligado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dá-lhe a conhecer as paisagens e a biodiversidade que povoam as obras literárias de escritores portugueses.

Outrora, quando o dono dum carro de bois queria dar nas vistas, fazia uma boa carrada e apertava as treitoiras. Resultado? Uma orquestração que obrigava o mundo a parar e ouvir.

Nada fácil construir um carro cantador.

Um carro sanfona, qualquer chabouqueiro o fazia. Um carro violino, só os estradivários do ofício o conseguiam.

Estes, não descuravam o mínimo pormenor. A principiar pela madeira.

Nem toda serve. Cada árvore, para o que nasce e onde. Por exemplo: em Peireses, as árvores nascidas e criadas a nascente, são muito mais leves, vibráteis e obedientes ao corte, do que as nascidas e criadas do lado oposto. Portanto, quem quiser madeira para um carro cantante, vai buscá-la a leste da povoação.

Depois, é preciso conhecer quais as árvores mais indicadas. Há um ditado que nos ensina:

«Eixo de vidoeiro,

Chumaços de salgueiro

E treitoiras de giesta,

todo o caminho é uma festa».

O ditado não fala nas rodas. Se falasse, diria:

«Rodas de carvalho verinho».

Tudo muito bem seco. Entre cinco a dez anos a secar. Só então a madeira estará em condições de ser trabalhada.

Não entro em particularidades de fábrica. Digo apenas que depende das aspirações do artista. Se pretende apenas um carro maria vai com as outras, limita-se a encaixar o eixo nas rodas, a pôr-lhe o chedeiro em cima e uma junta de vacas à frente. Se aspira a um carro bom tenor, recorre a outros requisitos.

Bento da Cruz, Prolegómenos: Crónicas de Barroso (“Os carros de bois”)

            “No princípio do mundo, quando o homem cavava a terra, esta abria bocas e gritava. O homem queixou-se ao Senhor, e o Senhor disse à terra: «Cala-te, que tudo criarás e tudo comerás».” Este relato divulgado por Leite de Vasconcellos assenta num princípio do qual Bento da Cruz passou, com a idade, a ser cúmplice:

            “Tempos houve em que eu, por inexperiência, embirrava com a cantoria dos carros de bois.” Hoje, se todas as regras de construção e afinação do carro de bois forem seguidas “à risca”, “pode o dono do carro entrar afoitamente nas competições de carros cantadores ao desafio.”

Salgueiro-branco. Foto: Willow/WikiCommons

Qualquer maljeitoso consegue finalizar “um carro sanfona”, mas, segundo o que este escritor/médico afirma:

“Um carro violino, só os estradivários do ofício o conseguiam.”

O som distintivo do carro de bois, uma forma de assinatura do artífice, eleva-o a uma categoria comparável à de um produto artesanal de excelência. E, ao mesmo tempo, compara dois ofícios exigentes: o construtor de carros e o artesão de violinos.

Região portuguesa na qual se enquadra este excerto literário. Autoria: Daniel Alves

Se é certo que, dantes, “as plantas falavam” (o chorão protestou com Deus, os tremoços rugiam, a lenha gritava, a videira chorava), também é determinante que não construir “um carro Maria vai com as outras” implica seguir normas: “Eixo de vidoeiro/ Chumaços de salgueiro”.

Vidoeiro (betula, nome científico) – porte médio, madeira clara, homogénea, macia, leve e durável, com boas características mecânicas para torno e marcenaria. Flexibilidade e elasticidade, planta de jardim ou florestal. A parte interna da casca da planta (“librum”) era papel na Antiguidade. Em medicina popular utilizava-se a seiva do vidoeiro – também útil para produzir cerveja – como diurético, anti-reumático e anti-inflamatório renal.

Quanto aos chumaços de salgueiro… pode ser conjunto de agulhas ou folhas de árvore, geralmente secas (caruma, no Minho) ou, no Brasil, chumaço significa peça de carro de bois que impede a deslocação do eixo sobre a cheda.  

E depois, segundo Bento da Cruz:

“cinco a dez anos a secar”. E, sem entrar “em particularidades de fábrica”, a verdade é que se “se aspira a um carro bom tenor”, recorre-se a “outros requisitos” como “abrir-lhe caixas de ressonância no eixo”. Vários segredos na estruturação sempre com um receio em vistas: “Um carro de rodas bambas será sempre um carro desafinado.”

Bento da Cruz descreve a atitude dos homens empenhados no canto do carro (no tempo em que a terra já não falava…): fazer boa figura significaria lavrar a terra com um carro afinado.  Alombando com muita carga, tão pesado quão harmonioso, o carro deve dar azo a ser aplaudido e celebrado pela família e vizinhança.

“Todos queriam que o seu carro cantasse mais do que o dos outros.”

            Grandes bois. Belos carros. Goelas “magnificamente afinadas”. Notáveis árvores indicadas para a robusta construção da festa de todo este caminho.

Salgueiro-branco. Foto: Willow/WikiCommons

            Última sugestão: quer escutar carro de bois cantador? Viaje em YouTube até ao Brasil: “Carro de Boi Cantador Renildo Alves”. Assista a uma sobrevivente competição.


Escrita com Raízes

Ana Paula Guimarães pertence ao grupo de investigadores ligados ao  “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”. Esta é a quinta crónica da série “Escrita com Raízes”.