Serpente-castanha-de-Bocage (Boaedon bocagei), no Parque Nacional da Kissama. Foto: Luis Ceríaco

Cientistas portugueses ajudam a descobrir três novas cobras em Angola

Espécimes armazenados em museus portugueses foram usados na descrição de duas destas serpentes descritas pela primeira vez para a ciência, todas elas do género Boaedon.

 

As serpentes deste género são conhecidas em Angola como cobras-das-casas-africanas ou serpentes-castanhas e contam-se entre as serpentes mais comuns am África. Recebem o primeiro nome por serem muitas vezes encontradas dentro das casas, explica em comunicado o Museu de História Natural de Ciência da Universidade do Porto (MHNC-UP).

Todas estas cobras são todavia “totalmente inofensivas para o ser humano, alimentando-se de ratos e osgas”. Podem ser mais facilmente identificadas devido à lista esbranquiçada no focinho, que lhes passa pelos olhos e dessa forma faz lembrar uma mascarilha.

“A história deste género, que começou a ser escrita em meados do século XIX, é confusa e problemática, representando um desafio para a comunidade científica”, nota o museu. E assim, uma equipa internacional à qual pertence como autor correspondente o curador-chefe do MHNC-UP, Luís Ceríaco, dedicou-se a um estudo aprofundado das cobras-das-casas-africanas.

Para isso, os oito investigadores – incluindo outra cientista portuguesa, Mariana  Marques – analisaram serpentes recolhidas durante expedições realizadas em Angola. Fizeram também a revisão de exemplares guardados em colecções de história natural de museus na Europa, Estados Unidos e Angola. Contaram ainda com a colaboração do Instituto Nacional da Biodiversidade e Áreas de Conservação, do Ministério do Ambiente angolano.

Até ao momento, acreditava-se que havia quatro espécies do género Boaedon em Angola, mas “combinando o uso de marcadores moleculares (genes mitocondriais e nucleares) com dados morfológicos”, a equipa concluiu que afinal existem nove espécies. Entre as cinco agora acrescentadas à lista, estão duas que eram conhecidas apenas no Congo e outras três, novas para Angola e também a ciência.

Os resultados do trabalho foram publicados na revista científica African Journal of Herpetology no início de Julho e dão a conhecer três serpentes “com características muito interessantes”, indica o MHNC-UP.

 

Exemplares guardados no Porto há mais de 100 anos

A nova Boaedon bocagei, por exemplo, é endémica da região de Luanda, ou seja, apenas ali é encontrada. “Não deixa de ser surpreendente. Afinal, numa metrópole com milhões de habitantes, ainda é possível descobrir espécies novas para a ciência!”, comentou Luís Ceríaco, citado no comunicado.

O nome deste animal de cor alaranjada – com duas listas brancas grossas que fazem de “mascarilha” na zona dos olhos – homenageia José Vicente Barbosa du Bocage, fundador dos estudos herpetológicos em Angola. Em português, foi baptizada de serpente-castanha-de-Bocage.

 

Serpente-castanha-de-Bocage (Boaedon bocagei), no Parque Nacional da Kissama. Foto: Luis Ceríaco

 

Os espécimes tipo usados para a descrição científica da Boaedon bocagei incluem exemplares recolhidos pela equipa de Luís Ceríaco em 2016, no Parque Nacional da Kissama, mas também outros que tinham sido encontrados há mais de 100 anos por Francisco Newton. Em 1903, este naturalista português liderou uma expedição para a Academia Politécnica do Porto (percursora da actual Universidade do Porto), na qual se encontraram espécimes que ainda hoje estão nas colecções do MHNC-UP.

“A possibilidade de se recorrer a exemplares armazenados em museus para este tipo de estudos demonstra de forma inequívoca a importância das colecções de história natural para o estudo actual da biodiversidade”, sublinhou Luís Ceríaco.

Já a serpente-castanha-de-Branch (Boaedon branchi) recebeu o nome em honra do herpetólogo sul-africano William R. Branch, que faleceu em 2018 e nos últimos anos tinha vindo a dedicar-se às investigações em Angola. Esta serpente endémica da província do Cuando Cubango, no sudoeste do país, foi recolhida durante expedições promovidas pela National Geographic ao Okavango.

 

Serpente-castanha-de-Branch (Boaedon branchi), na província do Cuando Cubango. Foto: William R. Branch

 

Nova espécie nas colecções do Instituto de Investigação Científica Tropical 

Quanto à serpente-castanha-de-Frade (Boaedon fradei), também agora descrita, é uma serpente endémica do sudoeste de Angola, mas também pode ser encontrada em partes da Zâmbia e da República Democrática do Congo.

 

Serpente-castanha-de-Frade (Boaedon fradei), na província do Moxico. Foto: Werner Conradie

 

O nome científico homenageia o zoólogo português Fernando Frade, antigo director do Centro de Zoologia do Instituto de Investigação Científica Tropical (IICT) e responsável pela colecta de alguns dos espécimes usados para a descrição da nova serpente.

Estes estão hoje armazenados nas colecções do IICT, no Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa. Portanto, mais uma vez assistimos ao potencial das coleções de história natural para revelar os segredos do passado das espécies que, no pressente, conhecemos.

 

Um ano de descobertas

As três novas espécies de cobras-das-casas-africanas somam-se a duas osgas (Hemidactylus nzingae e Hemidactylus paivae) e à lagartixa de olhos de serpente (Panaspis mocamedensis) destacada num artigo da National Geographic, já descritas no inicio deste ano.

Até ao final deste ano, Luís Ceríaco espera que sejam descritas “pelo menos mais seis espécies de répteis e anfíbios, que já se encontram em processo de publicação, e que se juntam a muitas outras cuja descrição se encontra neste momento em processo de escrita”. Algumas destas novas espécies estão guardadas no museu da Universidade do Porto.

 

Luís Ceríaco com um exemplar de serpente-castanha-de-Bocage no MHNC-UP. Foto: MHNC-UP

 

As descobertas agora anunciadas estão ligadas a um trabalho vasto de recolha e pesquisa que teve início há alguns anos, em Angola e noutros países vizinhos, realizado pela equipa de Luís Ceríaco. Foi assim que aconteceu também a descrição, por exemplo, de uma nova espécie de lagarto na Namíbia, em 2018. Mais recentemente, em Abril passado, foi a vez do novo lagarto-espinhoso-de-N’Dolondolo, descrito por Mariana Marques.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.