/

Em Noudar à procura de um Narciso de Outono

Fernanda Gamito partiu à procura do narciso-do-tarde, um dos únicos dois narcisos de Portugal que não florescem no fim do Inverno ou na Primavera. Onde: Parque de Natureza de Noudar. Quando: últimos dias de Outubro.

Nem serôdio, nem extemporânio, nem “da tarde”, como por vezes o identificam poeticamente, pois pode ser visto desde o amanhecer. O narciso-bravo ou narciso-do-tarde, apesar de serotinus (tardio) de nome ciêntífico, floresce no seu tempo próprio, o Outono. 

Foto: Fernanda Gamito

Quase todos os narcisos silvestres em Portugal florescem no fim do Inverno ou na Primavera. Todos menos dois. O narciso-do-tarde (Narcissus serotinus), assim chamado por surgir numa época em que já não o esperávamos, é um dos dois, ambos alentejanos, pequenos, frágeis e raros tesouros botânicos de Outono*. Foi o serotinus, originário daqui, do Sudoeste da Península Ibérica (e também do Noroeste de Marrocos), que nos levou ao remoto Parque de Natureza de Noudar, nos últimos dias de Outubro. Com as primeiras chuvas, esperam-se bermas de caminhos e os prados húmidos no azinhal cobertos de flores brancas, de perfume levemente narcótico.

De Barrancos até à Herdade da Coitadinha, no Parque de Natureza de Noudar, são 9km de terra batida. Nas curvas da estrada, nesta altura, surge fugaz o veado, uma família de perdizes, a sombra do javali. Mas também o gado mertolengo, raça autóctone criada em regime extensivo na Herdade, ou os porcos pretos que chegaram para a engorda com bolota na época da “montanheira”, daqui até Fevereiro.

Foto: Fernanda Gamito

O extenso Parque de Natureza, cujos limites são duas linhas de água – a Ribeira de Múrtega e o Rio Ardila – é um refúgio de vida selvagem que foi criado pela EDIA (Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas de Alqueva), como medida de compensação pela perda de habitats de ecossistemas de montado, galerias ripícolas e matagais mediterrânicos, originada pela construção da Barragem de Alqueva, no ano 2000. Nascido assim de uma espécie de complexo de culpa do desenvolvimento em tempos modernos, o Parque situa-se em território pertencente à Rede Natura 2000 – Zona de Proteção Especial Moura-Mourão-Barrancos e tem  permitido, neste ínício do século XXI, a preservação de uma paisagem única, natural e humanizada, onde os valores do património cultural e natural se entrelaçam. 

Já se avista o cénico Castelo de Noudar, acabado de construir em 1307, no reinado de D. Dinis, sobre o que foi um assentamento mouro. No caminho até lá, soam chocalhos, rondam aves de rapina, encontra-se abrigo nas choças de telhado de colmo e, por fim, nas alturas, rodeadas de xisto, surgem as vistas deslumbrantes sobre os montes do lado de cá e do lado de Espanha, com igual beleza. 

Foto: Fernanda Gamito

A seca deixou os seus sinais no azinhal. Aqui e ali, podemos testemunhar o fenómeno do “declínio do montado”, com a perda de vigor das árvores, a morte de alguns espécimes e clareiras esparsas. A boa notícia é que, a par da renovação da atividade agrícola tradicional e do ecoturismo, a gestão do Parque está a promover ativamente a conservação e a regeneração do montado de azinho, aplicando as técnicas silvícolas mais adequadas.

É nas encostas que descem suavemente para o vale da Ribeira de Múrtega, já perto da Herdade, que os vemos finalmente: campos de florzinhas brancas no Outono! Neste local, cobrem abundantemente prados e pastagens, mas as populações do narciso-do-tarde têm vindo a reduzir. Foi também a Barragem de Alqueva que, na região do Alentejo, originou a destruição e fragmentação das populações da espécie, atualmente com estatuto de Quase Ameaçada.  

Foto: Fernanda Gamito

Por agora, não é ainda demasiado tarde para apreciar o Narcissus serotinus, preservá-lo e divulgar a sua história. 

*O outro é o narciso-do-guadiana (Narcissus cavanillesii)