Cogumelo Boletus edulis. Foto: LukeEmski/WikiCommons

Recolha descontrolada de cogumelos silvestres ameaça estas espécies indispensáveis

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Nesta altura do ano, milhares de pessoas recolhem cogumelos silvestres comestíveis de Norte a Sul. A Quercus pede mais controlo para esta actividade e denuncia más práticas e o comércio ilegal transfronteiriço de milhares de toneladas destes fungos recolhidos anualmente em Portugal.

Os cogumelos silvestres, que surgem mais frequentemente durante o Outono, são trabalhadores incansáveis dos solos. São os recicladores de nutrientes por excelência e, por isso, são indispensáveis.

Cogumelo Boletus edulis. Foto: LukeEmski/WikiCommons

É nesta época do ano que milhares de pessoas apanham cogumelos silvestres.

Mas esta prática ancestral, se descontrolada, pode constituir uma ameaça para a biodiversidade.

Em Outubro, a Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza denunciou uma situação que considera preocupante.

“A maioria dos cogumelos silvestres comestíveis recolhidos em Portugal têm como destino a comercialização via mercados internacionais, principalmente em países como Itália, França e Espanha”, explica a Quercus, em comunicado.

“Contudo, a falta de um enquadramento legal e regulamentar desta atividade está na raiz da escassez de dados sobre as quantidades e valores reais transacionados e da falta de fiscalização adequada. Esta falha consubstanciada permite que, anualmente, saiam do país, muitas vezes através de canais comerciais ilegais, milhares de toneladas de cogumelos silvestres.”

Esta situação tem impactos negativos para estes fungos.

“Os cogumelos, frutificações produzidas pelos macrofungos, são somente a parte visível de uma rede infinita de hifas – o micélio – presente em praticamente todos os tipos de solo”, que faz a reciclagem de nutrientes, disse à Wilder Nuno Alegria, membro da Quercus.

“Quando se apanham cogumelos silvestres, o mais importante é não afetar esta ‘rede’, garantindo que a perturbação do solo seja mínima, impedindo assim que se abra uma porta a infeções por outros organismos, acumulação de água ou dissecação.”

“Também o excesso de pisoteio, que leva à compactação do solo e à destruição dos matos presentes nesses ecossistemas, representa um dos impactos negativos causados pela apanha desprovida de boas práticas. Realçar que, obviamente, uma má gestão do solo, como por exemplo a constante mobilização profunda deste por parte dos proprietários, causa impactos de outra ordem de grandeza em relação aos causados pela apanha.”

Outra das práticas incorretas é, segundo Nuno Alegria, “a recolha de exemplares muitos jovens ainda imaturos, impedindo assim a dispersão dos seus esporos e consequente renovação dos micélios, trocas genéticas e colonização de novas áreas. Igual impacto na dispersão tem a recolha de exemplares muito maduros, além de se retirar biomassa ao ecossistema”.

Frade (Macrolepiota procera). Foto: Leonhard Lenz/WikiCommons

Actualmente, a protecção dos cogumelos não está garantida, alerta a Quercus.

De facto, “nas zonas onde a apanha é mais incidente é notória uma redução das espécies mais apreciadas em termos gastronómicos, dados que têm somente por base relatos individuais, evidenciando uma lacuna na monitorização oficial dos impactos da apanha de cogumelos e a escassez de estudos técnicos”, notou Nuno Alegria.

Em Portugal as regiões mais procuradas estão na região norte, principalmente Trás-os-Montes e Alto Douro, Minho e Beiras. “Estas regiões apresentam períodos longos de precipitação e valores de humidade elevados, aliados a temperaturas máximas mais amenas, relevos com altitudes variados e áreas florestais de espécies autóctones, tornam estas regiões de excelência para esta atividade.”

Segundo este especialista, será nas áreas transfronteiriças que a atividade de apanha é mais intensa, “resultado da grande procura europeia destes recursos naturais e naturalmente da falta de legislação e fiscalização adequadas”.

Além do impacto da recolha mais intensa, os cogumelos estão a sofrer ainda com as alterações climáticas, principalmente por causa da “redução das épocas primaveril e outonal preferenciais para a frutificação dos cogumelos”.

O que faz falta fazer

Perante esta situação, a Quercus defende que “é preciso fazer mais e fazer melhor, procurando contornar a inércia ou falta de vontade do legislador em encontrar o necessário enquadramento legal para proteger as espécies micológicas e os seus ecossistemas, bem como para combater o comércio ilegal transfronteiriço destes fungos recolhidos em solo nacional”.

Segundo Nuno Alegria, actualmente há fiscalização do comércio de cogumelos silvestres, mas está “baseada em pressupostos generalistas padronizados para todo o tipo de produtos ‘contrabandeados’. Os poucos estudos e dados que existem evidenciam claramente que todos os anos cruzam a fronteira de forma ilegal milhares de toneladas de cogumelos silvestres apanhados em território nacional, que representam valores na casa das centenas de milhões de euros. Mais uma vez é na região transfronteiriça, localizada no interior do país onde as populações têm rendimentos mensais mais baixos, que estas práticas estão mais presentes, embora diversas empresas europeias (principalmente espanholas) façam circular os seus camiões frigoríficos por praticamente todo o país, recolhendo em Portugal para posteriormente expedir ou transformar a partir das suas sedes”.

Nuno Alegria defende que é “essencial capacitar os intervenientes, formando desde os apanhadores às entidades fiscalizadoras. Melhorar a recolha de dados, implementação de estudos e promover o debate público fortalecendo as bases para a criação de legislação adequada às especificidades do sector, dando sempre destaque às boas práticas a aplicar”.

Cantarelos (Cantharellus cibarius). Foto: Strobilomyces/WikiCommons

“A fixação local da riqueza derivada do comércio e exploração destes recursos é indispensável para estas populações rurais, permitindo uma repartição de dividendos mais justa para apanhadores e proprietários, diluindo os lucros elevados dos intermediários. Uma ideia é iniciar este processo de regulamentação específica da apanha e comercialização nas áreas protegidas, criando áreas-piloto onde podem ser testadas as ações mais efetivas a aplicar no geral. É exemplo o artigo 29º do Plano de Ordenamento do Parque Natural de Montesinho.”

A Quercus recorda que a recolha de cogumelos silvestres em Portugal “ainda carece de legislação específica”.

“Os artigos contidos no código florestal (principalmente o artigo 64), que foi revogado em março de 2012, representam o único avanço prático no sentido de regulamentar este setor. É de realçar que as medidas presentes no referido documento são atuais e adequadas. Nos últimos anos diversas entidades, como associações micológicas, universidades, administração central e investigadores na área da micologia, já elaboraram propostas de legislação, tendo em vista a criação de uma Lei que enquadre a recoleção de cogumelos silvestres.”

Alguns municípios, como o de Bragança (Plano de Ordenamento do Parque Natural de Montesinho, 2008), começam a estudar a possibilidade de criar regulamentação local para a recolha e venda de cogumelos silvestres nas áreas naturais sob a sua jurisdição administrativa.

De uma forma geral, as pessoas que gostam de colectar cogumelos podem ajudar conservar a biodiversidade micológica de várias formas. Tudo passa por “seguir as boas práticas de apanha, que também variam consoante a espécie em causa”, explicou Nuno Alegria. “A DGADR e o ICNF em Julho de 2013 disponibilizaram o Manual de Boas Práticas de colheita e consumo de Cogumelos silvestres onde se apresentam informações sobre como colher, o que colher, onde colher, como transportar e como consumir.”


Saiba mais.

Qual a importância dos cogumelos para a natureza? Nuno Alegria explica.

Cerca de 80% das plantas estabelecem micorrizas em condições naturais, o que representa grandes vantagens para as plantas, não apenas pelo aumento de absorção de nutrientes – estimulando o seu crescimento –, mas também alguns fungos micorrízicos podem reduzir efeitos provocados por alguns organismos patogénicos, tornando-se deste modo elementos de luta biológica.

Os fungos, juntamente com as bactérias, são os únicos seres vivos existentes capazes de digerir duas das substâncias presentes numa árvore – lenhina e celulose – realizando a decomposição da matéria orgânica. Através desta decomposição, os fungos promovem a reciclagem de nutrientes que já fizeram parte de outros seres vivos (mais informações aqui).


Agora é a sua vez.

Aqui estão 10 cogumelos que pode procurar nos bosques durante o Outono.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.