Abelharuco. Foto: Wolfgang Vogt/Pixabay

Linhas: A mão, o papel, o pássaro e o horizonte em conversa

Todos os meses, o projecto “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”, ligado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dá-lhe a conhecer as paisagens e a biodiversidade que povoam as obras literárias de escritores portugueses.

“Acocorado, entre a mesa e o fogo, falando para quatro crianças a quem chamava de sobrinhos, explicando, desenhando pássaros que não via, mas que sabia estarem escondidos, amalhados nas tocas, à espera que o temporal passasse, para mais tarde iniciarem os ninhos, ele sabia do cuco, do rabirruivo, do pisco, do fuinha, do abelharuco papador de figos, do rouxinol, da toutinegra. De cor, ele sabia onde se encontrava a plumagem clara, as penas escuras, as gravatas, os capuzes, as coroas, as faces, as ventas, os olhos, as longas penas das caudas. Falava alto — Para se desenhar um pássaro, seja ele qual for, deve começar-se por desenhar um ovo. Dentro do pássaro está sempre um ovo, a forma interna dele é essa. Depois de desenhado o ovo, lança-se em torno o que menos importa. As penas. Mas é preciso cuidado com as penas, elas é que lhes dão a beleza. É preciso ter a mão muito boa para pintá-las. Não há nada mais difícil do que pintar penas. Os sobrinhos iam buscar uma, ele separava-lhe as barbas, juntava-as, mostrava a flexibilidade e a resistência da ráquis, e depois dizia — «Agora vamos imitá-la.» Mas depois lembrava que elas se dispunham aos milhares por camadas, que por vezes sabíamos que estavam lá mas já as não víamos, que se transformavam em tufos lisos, e que se fechássemos os olhos só veríamos que um pássaro era uma organização de manchas. — «Vai sair um, só com manchas!» E ele pegava no carvão e no esfuminho e espalhava as sombras até encontrar as manchas.”

Lídia Jorge, O Vale da Paixão

A cena descrita em epígrafe pertence a Vale da Paixão de Lídia Jorge – uma das premiadas obras da fértil e pujante escritora e ensaísta, cujo percurso literário se faz em diversos géneros e há quarenta anos.

Embora cercadas pela borrasca insistente, quatro crianças maravilham-se com a admirável (e temida) força do desenho, revelada por Walter, o tio ausente, em incessante viagem, e, por isso, apelidado pela família de trota-mundos e atravessa-mares. Debruçadas sobre a mesa, elas mantêm-se absortas, quietas e mudas, durante horas, atraídas pela extraordinária habilidade e conhecimento desse apaixonado observador de aves na natureza circundante. A fauna e flora do globo surgem em desenhos rápidos, mas também em desenhos onde os pássaros parecem dotados de alma e fala. Desenha-os de cor, conhecedor da sua aparência, anatomia e fisiologia, calendário e habitats próprios. Enquanto o faz, ensina aos sobrinhos a fórmula de o fazer a partir da forma interna. Apela à correcção desta fórmula mediante a paciente observação analítica, um vaivém entre perceber e representar figurativamente o visível. Porque a ave fugidia vista numa folha de papel é – lembra – uma certa ordenação de manchas. Pela sua mão exprime-se a memória de excursões na natureza – eivada de uma transgressiva e (alegadamente) indecorosa inutilidade; opera-se o chamamento adiantado (antes da época dos ninhos) de aves estivais. De aves migradoras (abelharuco; rouxinol-comum e o do-mato; toutinegra-tomilheira; cuco-canoro e o rabilongo) – dadas a cíclicas idas e voltas entre África e o Sul do nosso país (onde nidificam) – e de aves residentes (toutinegra-de-barrete-preto ou o de-cabeça-preta; fuinha-dos-juncos), cujos cantos e vocalizações (um dos recursos do seu arsenal comunicativo) anunciam a Primavera. 

ave
Toutinegra-de-cabeça-preta. Foto: Daniela/Wiki Commons

Os pássaros estão aliados ao celeste e ao angélico. À mediação entre terra e céu. São arquétipos da alma e da imortalidade, em mitologias e religiões. O seu simbolismo varia consoante as diferentes culturas e tempos. O canto do rouxinol é símbolo da poesia, do amor e voz da natureza.  

O desenhador é visto como uma ave migrante, sempre de partida, sem laços com os lugares. Excepto com os pássaros: de um novo lugar, o desenho de um novo pássaro ia na carta expedida para a casa paterna. De volta ao ninho familiar, pela última vez, ele é a ave com a má-notícia da diáspora. O pio de Alcíone – a assombrar a cultura e a paisagem agrária mediterrânica (a cujo colapso Lídia Jorge faz alusão em Vale da Paixão). A geografia do dinheiro a motivar as migrações humanas e a pilhagem do planeta.    

Rouxinol-comum. Foto: Jacob Spinks/Wiki Commons

Um homem diferente e mutável, afeiçoado ao verbo e à beleza dos pássaros. Walter é temido, suspeito de ser como o cuco – parasita de ninhos, com vocalizações adaptadas ao tipo de hospedeiro – ou como o abelharuco – reciclador de tocas de outros pássaros. Disposto a ir, a largar a terra, e disponível para encarnar uma outra figura. 

Abelharuco. Foto: spacebirdy / CC-BY-SA-3.0“

Um homem com a cabeça cheia de pássaros que, no final da vida, para representar o devir de si próprio – de amador em coisa amada – opta pelo esboço incompleto de um pássaro. Despojado de penas, enfeites, desfazem-se os traços de uma sombra movente.


Escrita com Asas

Carlos Augusto Ribeiro pertence ao grupo de investigadores ligados ao “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”

Esta é a décima crónica da série “Escrita com Asas”.