Os estorninhos repousam nos caramanchéis…

Todos os meses, o projecto “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”, ligado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, dá-lhe a conhecer as paisagens e a biodiversidade que povoam as obras literárias de escritores portugueses.

       “Estavam silenciosos nos seus caramanchéis, […] o estorninho, de pernas escarlates, bico de ferro, plumagem verde, azul e cobreada, com o dom de articular vozes como a pega, e grandes instintos pera se domesticar e comer ovos de pomba (…).”  

Camilo Castelo Branco, Eusébio Macário, 1879

Os esturnídeos – Sturnidae – constituem uma família de aves passeriformes. De comportamento gregário, são facilmente reconhecíveis, medindo cerca de 20 cm da ponta do bico à ponta da cauda. Juntam-se em bandos compactos, fazendo dos “caramanchéis” um dos seus locais de repouso, tal como descrito por Camilo Castelo Branco (1825 – 1890), no excerto em epígrafe.

Estorninho-preto. Foto: El Golli Mohamed/WikiCommons

Estorninhos? Há muitos. Existem cerca de cem espécies em todo o mundo, mas, na Europa, podem observar-se sobretudo três: o estorninho-preto, o malhado e o rosado. Em Portugal, o mais comum e residente é o preto, por vezes confundido com o melro. Devido à sua abundância e capacidade reprodutiva, está longe de ser classificada como espécie ameaçada. Por revelar “grandes instintos pera se domesticar”, o estorninho vive quer em ambientes urbanos – parques e jardins em grandes cidades –, quer em habitats arborizados e zonas agrícolas, sobretudo de sequeiro. Alimenta-se de insetos, vermes, sementes, frutos e bagas. Acrescente-se-lhe uns “ovos de pomba” e terão um banquete imperdível. 

Os estorninhos são vaidosos e admiráveis. A cor das plumas que exibem altera-se, consoante a estação do ano. A plumagem nupcial ou de verão do estorninho-preto (Sturnus unicolor) é preta, o bico, amarelo, e as patas, rosadas; no inverno, salpica a toilette negra com pintinhas brancas, desfilando, com orgulho, o bico, agora preto. A fêmea apresenta uma plumagem um pouco mais baça. O estorninho-malhado (Sturnus vulgaris) é migrador, ocorre em Portugal como invernante, e envaidece-se das pintas brancas, especialmente grandes, que ostenta no outono e no inverno. As patas, essas, são vermelhas, “escarlate”, como mencionado em epígrafe. O estorninho-rosado (Sturnus roseus) não ocorre em Portugal, mas apenas na parte ocidental da Europa, da Grécia à Hungria, chegando, por vezes a Itália. A sua ‘indumentária’ é facilmente identificável: os adultos pavoneiam o dorso e peito rosados, coroa e asas pretas. Os jovens são castanho-clarinhos, destacando-se o bico amarelado e o dorso um pouco mais claro que as asas. Camilo descreve os estorninhos-pretos com uma “plumagem verde, azul e cobreada”. Muito possivelmente a personagem Frei Justino teve a sorte de admirar o estorninho-preto no ângulo certo da luz solar, sugerindo as nuances de reflexos metálicos verde-arroxeado descritas.

 

Estorninho-malhado. Foto: Sharp Photography/WikiCommons

A engrandecer a plumagem associa-se a versatilidade do canto que os estorninhos vocalizam durante todo o ano, sobretudo na época de reprodução. Manifestando “o dom de articular vozes como a pega”, possuem um repertório variado, visto que são excelentes imitadores de outros pássaros e de outros sons (pissitam). Por vezes, exercitam este mimetismo com tal veemência, que se tornam um incómodo auditivo para quem se encontre nas proximidades. Tal não se revelou um problema para o mulherengo Frei Justino do Rosário, a quem Joaquim António de Aguiar, com a extinção das ordens religiosas em 1834, concedera o enorme privilégio de sair do convento, dando “vivas à Liberdade, e à Rainha e Carta”. De regresso a casa, a Padornelos, numa manhã de julho, “estavam silenciosos nos seus caramanchéis”, o estorninho, o cuco, o pintassilgo, a poupa, a carriça, o galo, os chascos, os tanjardos, entre outros passarinhos, contrastando com os “cantores da aurora”: o melro, o tordo, as toutinegras que demonstraram, habilmente, os seus dotes musicais, comemorando a ‘libertação’ do Frade.

Bando de estorninhos. Foto: Katunchi/WikiCommons

Ao surgirem em grandes bandos, estas aves podem constituir uma preocupação séria para a aviação e podem provocar danos irreparáveis na agricultura. Todavia, o seu voo em bando de centenas de aves, dinâmico e sincronizado, apresenta uma cadência tão harmoniosa, que parece emitir sussurros, revelando-se um espetáculo deslumbrante, uma espécie de infindo bailado, uma visão absolutamente mágica. A belíssima coreografia celeste que exibem constitui um espetáculo acrobático avassalador aos olhos de quem o observa. Por isso atrai investigadores e fotógrafos, na tentativa de captarem o melhor ângulo e de estudarem o seu – ainda desconhecido – comportamento grupal.


Escrita com Asas

Maria Mota Almeida pertence ao grupo de investigadores ligados ao “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”

Esta é a décima primeira crónica da série “Escrita com Asas”.