Life Rupis: Cresceu a detecção de casos de envenenamento, mas faltam suspeitos em tribunal

abutre-do-egito-observado-de-perfil
Abutre-do-egipto, também conhecido por britango. Foto: Ricardo Brandão/CERVAS

A criação de duas equipas cinotécnicas do SEPNA/GNR no Douro Internacional, impulsionada pelo Life Rupis, ajudou a encontrar mais casos de envenenamento. Mas até hoje, sem qualquer consequência para eventuais culpados, lamenta o coordenador do projecto que terminou em Novembro de 2020, Joaquim Teodósio.

WILDER: Em muitos pontos do país, incluindo no Douro Internacional, têm sido encontrados problemas com casos de envenenamento de vida selvagem. Qual foi a vossa experiência ao longo do Life Rupis (2014-2020)?

Joaquim Teodósio: O veneno é uma questão muitíssimo problemática para a conservação da natureza. Por exemplo, no Douro Internacional, onde agora temos dois casais de abutre-preto e 120 casais de britango, um problema de veneno pode eliminar, de repente, uma parte muito importante dessas populações. 

O veneno é importante também para a saúde pública, porque quem tem o veneno em casa ou o coloca no terreno, pode afectar pessoas. E em muitos casos é um problema para os animais domésticos, porque muitas das situações com que nos deparámos foram dirigidas a animais domésticos, como cães e ovelhas. Umas vezes por uso maldoso, outras por aplicação indevida das substâncias. Por exemplo, a utilização de herbicidas em zonas onde o gado se vai depois alimentar, o que muitas vezes leva à morte destes animais.

W: E como é que lidaram com este problema?

Joaquim Teodósio: É sem dúvida uma das acções em que fomos trabalhando e avançando com resultados positivos, que esperamos que se mantenham no futuro. Uma das coisas foi o aumento da capacidade de investigar e avaliar estas situações. No âmbito do Sepna – Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente, da GNR, foram criadas duas brigadas especialistas para toda a área portuguesa do projecto – cada uma com um agente e um cão – que vão continuar a trabalhar e que têm um papel muito importante: encontrar e investigar se era veneno e procurar muito rapidamente a origem.

Houve uma articulação também muito boa entre Portugal e Espanha. Quando falamos em questões fronteiriças como a situação do veneno, isso é realmente importante. Se estamos numa zona de fronteira e encontramos uma ave morta com veneno, não sabemos se foi de um lado ou do outro que ocorreu. Temos legislação diferente e entidades diferentes que investigam o que aconteceu, pelo que é preciso ir afinando esta articulação para se encontrar rapidamente a causa do envenenamento. Porque a questão do veneno também tem isso. Se não for rapidamente identificado, pode causar mortalidade durante dias.

W: Quantos casos foram investigados ao longo do projecto?

Joaquim Teodósio: Tivemos 37 situações possíveis de veneno. Destas, em 17 as análises comprovaram que era veneno. O número mais alto foi identificado a meio do projecto, quando as equipas dos vários parceiros estavam mais no terreno, as pessoas também estavam mais alerta e quando às vezes encontravam aves ou outros animais mortos informavam a equipa do Life Rupis.

Nalguns casos em que se comprovou o uso de veneno, verificou-se que tinham sido usadas estricninas – venenos que já estão proibidos há 20 ou 30 anos mas que continuam por aí armazenados, muitas vezes sabe-se lá como ou em que situações. Aqui a questão do perigo para a saúde pública continua a ser importante. Infelizmente, das situações que foram seguidas, nenhuma chegou a ter um suspeito identificado e condenado.

W: E porquê?

Joaquim Teodósio: Nesta questão do veneno também trabalhámos muito em conjunto com o projecto LIFE Imperial, na zona do Alentejo. São situações muito complicadas. Quando se consegue prova, muitas vezes não é fácil ter um suspeito; quando se tem um suspeito, muitas vezes não se consegue ter prova suficiente.

E é um trabalho que ainda tem de continuar. É importante continuar um trabalho de informação e de formação, até mesmo a nível judicial, nos tribunais e no Ministério Público, para mostrar que estes são assuntos relevantes e preocupantes. Muitas vezes não há essa sensibilidade e rapidamente se pode fechar um processo sem avaliar até ao fim as consequências que pode ter tido.

W: Mas em quase 40 situações suspeitas, nada chegou a julgamento?

Joaquim Teodósio: Houve situações em que não se verificou veneno. Noutras, com animais encontrados envenenados já há muito tempo, não havia material suficiente para se conseguirem fazer as análises, e por isso ficou apenas a suspeita. Noutras situações, em que realmente se conseguiu ter a prova de que havia veneno, depois não se conseguiram encontrar nem suspeitos nem outras provas que permitissem fortalecer o caso.

A questão do veneno tem sido muitas vezes ligada a questões de disputas de terrenos, à caça, a atritos entre vizinhos, em que se acaba por tentar envenenar os animais domésticos e as espécies selvagens são vítimas secundárias. Mas mesmo estas são situações muito graves e que têm de ser identificadas e combatidas rapidamente.

W: E o que é que deve melhorar para que haja consequências?

Joaquim Teodósio: Tem muito a ver com a rapidez de actuação no terreno, o que quer com o Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas quer com a GNR é essencial. Quando há uma denúncia, é necessário haver meios para rapidamente investigar uma situação. Claro que, quando continuamos a ter situações em que há poucos recursos, estes casos são tidos como secundários e isso torna-se evidente quando chegam aos tribunais. Há processos que são encerrados com uma avaliação muito superficial, porque no meio de muitos processos que o tribunal tem em mãos, estes em que morre uma raposa ou um cão acabam por ser considerados mais secundários.

E por isso, em situações em que havia mais prova ou em que o processo tinha sido fechado, mas pensávamos que podíamos dar mais contributos, também nos constituíamos como assistentes e tentávamos informar o melhor possível o Ministério Público e os tribunais, para que o processo pudesse receber a atenção devida. Mas estas são situações que ocorrem por todo o país, em que é essencial ter uma abordagem mais abrangente e estratégica que não dependa só da actuação dos projectos Life e das organizações não governamentais.

Nesse âmbito, nos últimos anos, a Procuradoria-Geral da República tem tido alguma abertura e é essencial que isso seja fortalecido. Por exemplo, em Espanha, a questão de haver um procurador dedicado aos crimes ambientais foi essencial para se começar a ter resultados mais efectivos e verdadeiras sentenças. É que quando as sentenças são a sério, também acaba por ser preventivo. Caso contrário, continua a ser aquela coisa de “o crime compensa”…

W: Os venenos foram um dos principais desafios ao longo do projecto?

Joaquim Teodósio: Sim, principalmente por ser uma questão quase aleatória. Apesar de haver uma base de dados histórica que nos permitia sabermos de algumas áreas onde tinham ocorrido mais situações, o que é essencial para se ir gerindo o trabalho preventivo e de fiscalização das equipas no terreno, na maioria das vezes estas situações surgiam de repente e onde menos se esperava, em alturas em que a disponibilidade não era a maior. E por isso essa sensação de falta de controlo – de ser algo em que numa vila toda a gente pode ser a favor e há uma pessoa que está contra, ou uma situação por acidente que leva ao envenenamento de animais dos quais os abutres ou as águias se podem alimentar – foi uma das situações mais complicadas de ir gerindo.

Por exemplo, tivemos a situação de um casal de abutres-do-Egipto que foram recuperados do ninho. Tinham levado alimento envenenado e acabaram por morrer no ninho. Mas estas são zonas de acesso muito complicado, às quais não é fácil chegar e recuperar os cadáveres. E nunca sabemos qual é a origem do veneno e se poderá estar a matar ainda mais animais. São situações complicadas, especialmente quando falamos em espécies que têm estado em declínio na região e com um efectivo reduzido.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.