Foto: Jorge Safara

Íbis-sagrada: Esta ave tem um nome que engana

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Apesar do nome sugestivo, a íbis-sagrada pode causar danos sérios na biodiversidade de países de onde não é nativa. No âmbito de uma série sobre espécies aquáticas invasoras publicada em parceria com o projecto LIFE Invasaqua, Pedro Filipe Pereira, investigador no LabOr – Laboratório de Ornitologia, da Universidade de Évora, explica-nos o que se passa com esta espécie em Portugal e no resto do mundo.

Que espécie é esta?

A íbis-sagrada (Threskiornis aethiopicus) é uma ave aquática de dimensões médias (cerca de 77 centímetros da extremidade do bico à ponta da cauda) de origem predominante africana, mas também está presente no norte do Golfo Pérsico. Pertence à mesma família de duas espécies nativas de Portugal, a íbis-preta (Plegadis falcinellus) e o colhereiro (Platalea leucorodia).

Habitualmente reproduz-se em colónias em árvores ou no solo junto à água, por vezes em conjunto com outras espécies de aves aquáticas. Caracteriza-se por ter o bico longo e curvado para baixo, bem como o pescoço e as patas longas. Nos adultos, a cabeça e o pescoço são desprovidos de penas e a pele é preta. A sua plumagem é semelhante à da cegonha-branca (Ciconia ciconia), embora a extensão de preto na asa seja menor na íbis-sagrada. As penas mais interiores da asa (escapulares), também pretas, são alongadas e plumosas nos adultos, dando à parte traseira do corpo um aspeto desgrenhado quando a ave está pousada.

Em Portugal, a íbis-sagrada foi detetada na natureza pela primeira vez em 1998, no vale do Baixo Mondego, após três indivíduos terem escapado ao cativeiro nessa região.

Plumagem de adulto e de juvenil de íbis-sagrada. Ilustração: IBISurvey / Pedro Filipe Pereira

Onde é que está presente em Portugal?

Esta ave não tem ainda populações estabelecidas em território português. É verdade que, em 1998, as íbis-sagradas detetadas no vale do Baixo Mondego reproduziram-se com sucesso e produziram três crias. Contudo, tanto quanto se sabe, este terá sido o único evento de reprodução na natureza da íbis-sagrada no nosso país.

Ainda assim, desde 2008, a espécie tem sido observada em Portugal quase anualmente, embora a maioria das observações corresponda a indivíduos isolados ou em pares. Esses indivíduos costumam ser registados em alimentação na companhia de colhereiros, garças ou cegonhas em arrozais, caniçais ou zonas de vasa.

As observações têm ocorrido em várias zonas húmidas do Centro e do Sul do país, sendo no vale do Baixo Mondego, na área envolvente ao estuário do Tejo e na costa algarvia que se concentram a maioria dos registos. A área potencial de ocorrência da espécie em território português é vasta, podendo também incluir as regiões do Interior, como por exemplo a região fronteiriça do rio Guadiana. 

Íbis-sagrada na região do Alandroal em julho de 2021. Fotografia: Jorge Safara

E como é que a íbis-sagrada chegou ao território português?

Esta espécie foi introduzida na Europa como ave ornamental, sendo por vezes mantida em coleções privadas onde as aves não estão sujeitas ao cativeiro e podem voar livremente para a natureza. Estas situações, às quais se podem adicionar introduções deliberadas, terão levado a que colonizasse ambientes naturais com sucesso, nomeadamente em França e Itália.

No caso de Portugal, a origem mais provável dos indivíduos observados na natureza será a fuga ao cativeiro de coleções nacionais ou espanholas. Excluindo a descendência do casal do vale do Baixo Mondego, ainda não foi possível confirmar em Portugal a ocorrência de aves nascidas na natureza provenientes de outros países europeus. 

Mas afinal qual é o problema com esta ave?

A íbis-sagrada é uma espécie de dieta oportunista: consome essencialmente pequenos animais, mas também detritos de origem humana.

O principal problema conhecido, associado à presença da espécie na Europa, é a predação de ovos e de crias de aves aquáticas. Este problema já foi identificado em vários países, nomeadamente em França e na Bélgica, e em diferentes grupos de espécies, tais como patos, garças, aves limícolas, gaivotas e andorinhas-do-mar. Localmente, foram já observados declínios populacionais de algumas dessas espécies atribuídos à predação pela íbis-sagrada.

Por outro lado, por se alimentar em aterros e também em áreas abertas, tem sido apontada como uma potencial hospedeira de doenças para espécies domésticas com as quais pode partilhar áreas de alimentação. Esta ave pode ainda consumir peixe com importância económica, como a enguia.

Em 2021, o laboratório de ornitologia da Universidade de Évora lançou uma plataforma de ciência cidadã para o registo de aves exóticas em liberdade em interação com o ambiente em que se encontram, com o objetivo de melhor compreender os seus impactos: o projeto IBISurvey. Os observadores de aves podem contribuir com os seus registos para ajudar os investigadores a melhor compreenderem os impactos da íbis-sagrada em Portugal. Para isso, basta que observem os comportamentos da ave (o que come, onde nidifica ou como se relaciona com outras espécies) e façam o registo da observação na plataforma do projeto

Íbis-sagrada a visitar um ninho abandonado de outra espécie na região do Alandroal em julho de 2021. Fotografia: Jorge Safara

Como é possível controlar ou erradicar as populações desta espécie?

Em França, Bélgica e Países Baixos, a íbis-sagrada tem sido controlada recorrendo ao abate a tiro e à esterilização dos ovos. No entanto, o abate a tiro não é viável nas colónias de reprodução, porque aquelas por vezes estão localizadas em áreas protegidas ou são partilhadas com espécies de aves nativas.

Nesse sentido, uma das técnicas utilizadas para o abate das aves adultas é a sua atração para áreas de alimentação afastadas das colónias, com o auxílio de modelos sintéticos de íbis usados como chamariz. As medidas de controlo levaram à erradicação da espécie na Bélgica (apenas aves isoladas) e nos Países Baixos (máximo de 12 casais em 2007) e à redução das populações francesas de mais de 5.000 aves em 2006 para cerca de 250 aves em 2020. 

E qual é a situação noutros sítios do mundo onde é invasora?

Atualmente, o país europeu com maiores populações de íbis-sagrada é a Itália. A espécie não tem sido alvo de controlo nesse país e em 2019 foram estimadas 11.000 aves a viver na natureza. Outras regiões do mundo onde a espécie se está a tornar invasora são os Emirados Árabes Unidos e Taiwan. Nos Emirados Árabes Unidos, foram contabilizadas pelo menos 350 aves em 2021. E em Taiwan, onde têm sido realizados esforços para controlar a espécie, foram estimadas entre 2.500 e 3.000 aves em 2018.


Série Espécies Aquáticas Invasoras

Em parceria com o projecto LIFE Invasaqua, a Wilder dá-lhe a conhecer algumas das principais espécies aquáticas invasoras em Portugal. O LIFE Invasaqua é um projecto ibérico co-financiado por fundos comunitários que divulga informação acerca da ocorrência e combate a espécies invasoras.

Recorde o que se passa em Portugal com o siluro, o mexilhão-zebra, a rã-de-unhas-africana, o alburno, a amêijoa asiática, o caranguejo-peludo-chinês, a amêijoa-japonesa, a gambúsia, o lagostim-sinal, a medusa Blackfordia virginica, o lucioperca, o caranguejo-azul, a ludevígia-rastejante e o jacinto-aquático.