Foto: Stephen John Davies/iNaturalist
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Crónicas naturais: Machos cuidadores e outras trocas dos falaropos

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Aves marinhas discretas observadas no mar português, os falaropos desafiam de várias maneiras a ordem normal das coisas, revela-nos Paulo Catry. “Haverá quem pense que ao menos nalgumas aves se fez uma espécie de justiça.”

Ártico, Julho 2022

Os falaropos são uns trocados. Os sexos trocam vários dos papéis mais habituais na reprodução. E cada ave troca de habitat, de dulçaquícola para marinho, do verão para o resto do ciclo anual. Alguns, não contentes com estes feitos, ainda trocam mais, de um oceano para outro, durante a migração. Já lá vamos.

Falaropos são aves pouco conhecidas. Não que sejam raros, mas são discretos e pequenotes e vivem longe das vistas da grande maioria das pessoas. Falo das duas espécies de falaropos mais marinhas e que são mais frequentes em Portugal. Existe uma terceira espécie que vive quase só em lagos salgados do continente americano e que embora por vezes apareça entre nós, fá-lo mesmo muito raramente – ignoramo-la por hoje.

A espécie que é de longe mais comum em Portugal é, curiosamente, a menos vista pela maioria dos observadores (outra troca). O falaropo-de-bico-grosso Phalaropus fulicarius passa no nosso mar com toda a regularidade, sobretudo de agosto a outubro, mas quase sempre ao largo. Já o falaropo-de-bico-fino Phalaropus lobatus aparece de vez em quando (sobretudo juvenis perdidos, pois estamos longe das suas rotas normais de migração) em salinas e em lagoas costeiras onde se torna um pouco mais fácil de observar.

Fêmea de falaropo-de-bico-grosso. Foto: Paulo Catry

Por esta época os falaropos estão no Ártico. E é aqui que encontro as duas espécies, nos lagos da tundra onde se reproduzem. Estão agora de vestes vistosas e bicos pintados, com uma particularidade curiosa e rara no mundo das aves: as fêmeas são mais vivamente coloridas que os machos (são ligeiramente maiores também). A diferença não é grande, mas é claramente visível.

Esta inversão da ordem normal das coisas (nas aves, quando há diferença entre sexos, são quase sempre eles os mais produzidos) também está presente nos papéis reprodutores. São os machos que compõem os ninhos e só eles incubam os lindos ovos em forma de pera (quase invariavelmente 4). E são os machos que acompanham a prole, guiando os pintos (que começam logo a alimentar-se por si), gritando alarmes quando necessário e aquecendo os pequerruchos por entre as penas ventrais ou debaixo das asas, o que acontece com frequência nestes climas tão frios. As fêmeas ignoram completamente os filhos. É quase caso para perguntar, como é que se sabe que as fêmeas são mesmo fêmeas? Bem, esta é fácil: são elas que põem os ovos… 

Macho de falaropo-de-bico-grosso. Foto: Paulo Catry

Se puserem os primeiros ovos cedo, estas senhoras são capazes de ir rapidamente à procura de outro cavalheiro que lhes olhe por uma nova postura. Assim, podem ter duas ninhadas num único curto verão ártico; e sem cuidarem de nenhuma. Haverá quem pense que ao menos nalgumas aves se fez uma espécie de justiça…

Os falaropos são da família dos pilritos e dos maçaricos. Como um qualquer pilrito miúdo, ia-se lá imaginar que uma pernalta deste tipo se adaptava a viver sobre o mar profundo nadando quase em permanência. Têm lobos nos dedos das patas, como os galeirões, e flutuam leves como rolhas de cortiça. Marinheiros rijos, não gostam das proximidades da costa. Por exemplo na Mauritânia concentram-se sobretudo na orla da plataforma continental e já pelo talude, onde as profundidades andam de roda dos mil metros, a dezenas de quilómetros de terra. Mar a valer.

Duas fêmeas de falaropo-de-bico-fino. Foto Paulo Catry

Os falaropos fazem migrações impressionantes. Do que se sabe, de entre estes que observo aqui nadando lado a lado num pequeno lago do ártico canadiano, os de bico fino voam para o Oceano Pacífico (invernando no mar ao longo do continente americano) ao passo que os de bico grosso deslocam-se primeiro para leste e depois para sul, até às costas atlânticas de África!

Os falaropos-de-bico-fino têm uma particularidade curiosa: apesar de terem populações que nidificam nos litorais do Atlântico Norte, não passam o inverno neste oceano. Assim, as aves norueguesas, por exemplo, migram sobre terra e dirigem-se ao mar Arábico, no norte do Índico. Já as aves da Escócia ou da Islândia levam a cabo uma das migrações de aparência mais disparatada que conheço: atravessam o Atlântico e descem a costa americana, mas só se satisfazem quando mudam de oceano. Assim, saltam por sobre a América Central para irem invernar no Pacífico!* Porque será que o Atlântico não lhes chega?

Representação esquemática de três rotas migratórias de falaropos-de-bico-fino e de uma rota de falaropo-de-bico-grosso. Mapa desenhado por Maria Dias com base nos estudos de van Bemmelen RSA et al 2019 e na compilação do Handbook of the Birds of the World.

Muitas vezes os falaropos rodopiam rapidamente, poisados na água, tanto no mar como em lagos. Nadam em círculos muito apertados, quase sem saírem do mesmo sítio. Com isso criam um pequeno vórtice na coluna de água que traz pequenos animais (como crustáceos ou insetos) até mais próximo da superfície, onde são mais facilmente capturados e ingeridos. Comem plâncton a um ritmo frenético. Rodopiam que nem loucos. Às tantas ficam tontos, sabe-se lá, e é assim que se trocam.

* Smith M et al 2014. Ibis ; van Bemmelen RSA et al 2019. Frontiers in Ecology and Evolution


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.