Foto: Аимаина хикари/Wiki Commons
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Crónicas naturais: Périplos emplumados e um picanço singular

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O biólogo Paulo Catry leva-nos em viagem, confortavelmente sentados no dorso emplumado das aves migradoras.

Maio 2023

(Nota prévia: se a sua geografia estiver esquecida, por favor muna-se de um globo terrestre para ler esta crónica – ah, já agora, se quiser traga também um guia de aves.)

Ali pelo início do século XX, Selma Lagerlöf reduziu um menino ao tamanho de um duende e pô-lo às cavalitas de um ganso doméstico que se juntou a um bando de parentes selvagens. Nils Holgersson viajou assim de norte a sul da Suécia, numa viagem maravilhosa que deu a conhecer o país aos seus próprios habitantes e a tanta gente pelo mundo fora (a muita gente mesmo; a epopeia foi um sucesso tal que, volvidos uns 120 anos, quando escrevo num browser “a mara…”, cinco caracteres apenas, aparece-me logo a sugestão do título do livro de viagens).

Os gansos migradores foram uma escolha acertada para Nils, bem entendido, pois sabia-se já nesse tempo que, vindos do Sul, os gansos viajavam até à Lapónia para se reproduzirem e que voltavam no outono, desaparecendo outra vez além Báltico. Percorriam a Suécia de lés a lés.

Às vezes ponho-me a imaginar por onde Nils teria viajado se tivesse vivido no século XXI. A Suécia é um país grande… ou antes pequeno, se visto à escala do planeta; e nos tempos que correm, as mais das vezes, querem-se ambições verdadeiramente globais. E se quiséssemos visitar a Terra à boleia de uma ave? 

O nosso viajante partiria então de um qualquer ponto que lhe aprouvesse, mas com a condição de ser daqui dos nossos lados. Desta feita não era o Nils, era o Jaime, ou a Marta. 

Hoje sabemos que a gama de escolhas de destinos, em trajetos diretos desde Portugal (só com eventuais escalas para reabastecimento) é vastíssima. O Jaime queria ir à terra do Nils? Facílimo, com escolhas muito diversas para as boleias, desde pombos-torcazes a abibes, narcejas, garças-reais, tordos de várias espécies, aves e possibilidades demais para todas nomear. 

Pilrito-das-praias (Calidris alba). Foto: Jean-Jacques Boujot/Wiki Commons

A Marta preferia o litoral de países tropicais? E porque não? Talvez um rouxinol a levasse aos Bijagós ou, se o pilrito-das-praias fosse bem escolhido, quiçá a viagem se alongasse até Angola ou mesmo à Namíbia, onde há leões e avestruzes que se refrescam frente à rebentação fria da corrente de Benguela. Nas asas de uma cagarra, a Marta podia chegar mesmo ao largo do Brasil, mas para pôr um pé em terra seria necessário ainda um último esforço a nadar.

Por Portugal e pelo nosso mar passam regulamente e em grande número aves de sítios tão distantes como o Canadá (por exemplo certos alcatrazes, ou as gaivotas-de-sabine) ou a Sibéria (muitas aves limícolas). Há dezenas de espécies vindas de toda a Europa, excetuando alguns países mais a sudeste, e os inúmeros migradores transarianos (desde milhafres a andorinhas) ligam-nos diretamente a todos ou quase todos os países de África. Chegam-nos ainda pardelas de vários pontos do Atlântico Sul, e até painhos-casquilhos dos mares antárticos.

A verdade é que há aves que navegam o planeta Terra de uma ponta à outra, literalmente (certos garajaus-do-ártico). Outras que circum-navegam o globo através do Oceano Austral (alguns albatrozes e pardelões). Não faltam viajantes maravilhosos por aí. Mas por mais prodigiosas que sejam as aves, não há nenhuma que percorra todas as regiões do nosso berlinde azul. 

Garajaus-do-ártico (Sterna paradisaea). Foto: Kristian Pikner/Wiki Commons

Então e se a Maria João quisesse ir a Honolulu, ou a Nova Deli? Às vezes ponho-me mesmo a jogar este jogo: escolho um ponto aparentemente difícil e distante, e pergunto-me quantas boleias de aeronave emplumada seriam necessárias para lá chegar. A resposta é simples: quando não chega uma, bastam duas, se os indivíduos forem escolhidos a dedo. Vejamos: uma viagem ao Havaí? Bem, apanhamos um garajau-do-ártico holandês aqui de passagem e, quando chegarmos ali a sul da Tasmânia, saltamos para as costas de uma pardela-sombria neozelandesa que uns meses mais tarde nos depositará, quando visitar de passagem o nosso destino desejado. Uma visita à Índia? Bastam dois pequenos passarinhos; por exemplo, uma petinha-dos-prados (de 15 a 20 gramas apenas) conduzia-nos na primavera à Noruega e dali passávamos para um pisco-de-peito azul (com o mesmo peso), que no outono seguinte nos levaria a visitar o marajá da nossa escolha. 

Talvez só por ignorância, ou por conhecimento ainda incompleto das migrações das aves, poderemos encontrar um destino que precise de três boleias.

Picanço-de-costas-vermelhas (Lanius collurio), na serra de Montesinho. Foto: Paulo Catry

Estes dias tenho sonhado persistentemente com um voo confortável em colchão de penas às costas de um picanço. Não é um picanço qualquer. Na verdade, é uma jóia de um picanço, um pássaro lindo de morrer. Quando esticadinho (e tem uma cauda comprida) nem 20 cm de comprimento mede, mas leva a cabo uma das viagens ornitológicas mais de pasmar.

O picanço-cascarrolho ou de-costas-vermelhas Lanius collurio é certamente o menos conhecido dos picanços nacionais. Chegou agora em maio, o mais tardio dos nossos pássaros primaveris. Encontra-se apenas no extremo norte do país, nas terras altas minhotas e transmontanas (um ou outro chega às Beiras, ali na serra de Montemuro), e depois da reprodução migra para África. 

Planalto de Castro Laboreiro, terra de picanços-de-costas-vermelhas. Foto: Paulo Catry

Mas se migra para África e vai para sul, afinal podemos encontrá-lo, nem que seja de passagem, por todo o território continental? Não. Para ir para África, os cascarrolhos ibéricos tomam um caminho que não lembraria ao mafarrico, nem lembrou a mais nenhuma ave de cá: voam diretamente para leste, até à Grécia ou à Macedónia!


Representação esquemática das rotas de migração dos picanços-de-costas-vermelhas ibéricos. Mapa desenhado por Maria Dias a partir dos dados do estudo de Tøttrup AP et al 2017. Journal of Avian Biology.

Daqui, então sim, migram para sul sobrevoando o Mediterrâneo e o Sara. Depois de meses de viagem, e de peripécias que não podemos hoje aqui relatar, chegam ao seu destino final. Passam o inverno em Moçambique, no Malaui ou na Zâmbia. No regresso de Moçambique, um nosso cascarrolho faz um desvio ainda mais para leste e visita a Península Arábica antes de se vir instalar, por exemplo, nas serranias do Barroso. Que contorcionamento de rota de viagem! Será porventura espírito ecuménico. Ou, calhando, fizeram-lhe um bruxedo ao passar ali por Vilar de Perdizes…


Saiba mais.

Leia aqui outros textos já publicados por Paulo Catry, professor e investigador do Mare – Marine and Environmental Sciences Centre, Ispa – Instituto Universitário, na série Crónicas Naturais. E também os artigos publicados em 2017, quando esteve à procura de aves marinhas no meio do Oceano Atlântico.