Macho adulto de águia-de-bonelli (Aquila fasciata). Foto: Creative Commons

As filmagens de um ninho na Tapada de Mafra estão a revelar um lado desconhecido das águias-de-bonelli

No âmbito do projecto LIFE LxAquila, um ninho desta grande águia tem sido filmado por uma pequena câmara escondida, desde o final de 2021. A Wilder falou com Ana Sá, bióloga da Tapada de Mafra, e conta-lhe três descobertas recentes.

Os últimos dois anos foram ricos em novas aprendizagens para os biólogos ligados ao LIFE LxAquila (2020-2025), um projecto coordenado pela Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA) que é dedicado à conservação da águia-de-bonelli (Aquila fasciata) na região de Lisboa. Em Portugal esta espécie, também conhecida por águia-perdigueira, está classificada Em Perigo de extinção.

É na Tapada de Mafra que vive um dos 16 casais contabilizados para a Área Metropolitana de Lisboa, e que tem sido seguido atentamente desde há muitos anos – mas em especial desde 1995, quando teve início uma parceria entre a entidade que gere este espaço e a SPEA. Desde há dois anos que os meses de nidificação passaram a ser seguido ainda mais de perto pela equipa, graças a uma pequena câmara escondida que foi instalada junto ao ninho no âmbito do LIFE LxAquila.

A Wilder falou com Ana Sá, que é bióloga na Tapada de Mafra, sobre três coisas novas que os investigadores ligados ao projecto ficaram a saber graças à instalação desta ‘nest cam’ (câmara de ninho, em português):

1. As águias-de-bonelli, afinal, “falam” bastante entre si

Águia-de-bonelli (Aquila fasciata). Foto: Rita Ferreira

No início de cada época reprodutora, que está a ter lugar por estes dias, macho e fêmea vão visitando o lugar do ninho, instalado num grande pinheiro-manso da Tapada de Mafra, e começam a recompô-lo, devagarinho. Mas se até recentemente estas aves pareciam ser bastante silenciosas, agora percebeu-se que não.

“Quando as observamos no ar, as águias-de-bonelli fazem umas vocalizações muito ténues”, descreve Ana Sá, que classifica estas aves como “super-predadores”. Na Tapada de Mafra, alimentam-se de aves mais pequenas, incluindo as crias dos bufos-reais – espécie que por sua vez também caça as crias da águia-de-bonelli – e ainda de alguns mamíferos e outras espécies. Do seu menu constam também as águias-de-asa-redonda e os peneireiros-vulgares, que ali não conseguem nidificar por serem caçados, e só o açor e o gavião escapam porque costumam voar por baixo das copas das árvores e assim passam despercebidos. “Sendo um super-predador, esta espécie faz o controlo de predadores mais pequenos”, nota a bióloga. Aliás, os 1201 hectares desta tapada, somando as partes civil e militar, não chegam para as necessidades do casal. “Precisam de caçar fora.”

Apesar de tanta actividade, esta espécie tem um comportamento “discreto”, mas afinal não é tão silenciosa como se pensava. Graças ao sistema de som que em 2023 foi instalado junto à câmara de filmagem do ninho, a equipa do LIFE LxAquila começou a ouvir os sons das duas aves do casal e apercebeu-se de que estas afinal comunicam bastante entre si. Foi dessa forma que obtiveram, diz Ana Sá, uma nova perspectiva sobre os comportamentos desta espécie.

“Começámos a captar vocalizações que não conhecíamos, como quando um elemento do casal se aproxima do ninho para troca de funções ou quando assinalam perigo. Vão piando de formas diferentes consoante o que está a acontecer”, descreveu à Wilder esta bióloga, que trabalha há 30 anos na Tapada de Mafra. Para já, reconhece, ainda não conseguem identificar o significado exacto de cada tipo de piar, consoante seja mais ou menos estridente. Mas quem sabe um dia?

2. Ele e ela partilham a incubação dos ovos

Um casal de águias-de-bonelli no seu ninho. Foto: Lalo Ventoso, Carlos Pache & Carlota Viada/Wiki Commons

Outra descoberta recente está relacionada com a forma como macho e fêmea assumem as funções da parentalidade. “A participação dos dois membros do casal na incubação, tarefa que se pensava ser mais da responsabilidade de fêmea, afinal é dividida de forma equilibrada pelos dois membros do casal”, explica Ana Sá.

Assim, ele e ela vão-se revezando nos cuidados com os ovos – a postura corresponde a um ou dois ovos, uma vez por ano – à medida que vão também assumindo outras tarefas do dia a dia. Quando por exemplo a fêmea, que costuma ser maior do que o macho, sai para caçar, é ele que se coloca cuidadosamente em cima dos ovos. Sempre com muito cuidado para não os danificar, tratando da sua incubação. Pelo menos, quando já sabe bem o que está a fazer… o que nem sempre acontece.

3. Aprendem por imitação

águia-perdigueira, de frente
Águia-de-bonelli (Aquila fasciata). Foto: Paco Gómez/Wiki Commons

Nas águias-de-bonelli, macho e fêmea costumam formar um casal para a vida toda, mas em 2022, sem se saber porquê, o macho do casal da Tapada de Mafra desapareceu. Ana Sá acredita que a causa poderá ter sido natural, até porque a ave em questão já tinha uma idade relativamente avançada, à semelhança da fêmea que ficou. Ao lugar deixado vago candidatou-se entretanto um juvenil, que terá “dois ou três anos” e que no ano passado teve a sua primeira experiência em casal.

“Foi uma sorte este juvenil ter vagueado por aqui. Felizmente foi bem acolhido pela fêmea, que deve ter 15 anos ou mais”, afirma a bióloga. “Com dois ou três anos de idade, estas águias já conseguem arranjar parceira e fixar-se num território, mas este macho poderia não ter sido aceite. Por vezes, macho e fêmea não são compatíveis.”

Neste caso, o ano de 2023 foi para este juvenil como se tivesse entrado na escola. As filmagens do ninho mostraram que no início não sabia o que fazer e que nem sequer tentava incubar os ovos quando a fêmea precisava de deixar o ninho para caçar. Quando ela regressava, ele encolhia-se a um canto, de cabeça baixa, relata Ana Sá, que monitorizou as filmagens em parceria com Rita Ferreira, da SPEA.

Ainda assim, à medida que o tempo passava, o jovem macho foi aprendendo “por imitação da fêmea, sendo essa uma aprendizagem bastante rápida”, descreve. “Apesar dos ovos terem sido rejeitados, pois possivelmente não estariam férteis, o macho aprendeu que precisava de caçar para a fêmea, aprendeu que precisava de a substituir na incubação enquanto esta se alimentava, e aprendeu a colocar-se em cima dos ovos… Foram momentos muito interessantes de seguir, apesar do resultado negativo desta última época de reprodução.”

Nos próximos anos, aliás, é provável que os mesmos episódios se venham a repetir, mas dessa vez do lado da fêmea, uma vez que também esta já tem uma idade considerável, nota a bióloga. Mas para já, se tudo correr bem, nas próximas semanas as filmagens do ninho deverão ficar novamente online em directo, disponíveis para quem tiver interesse em seguir o dia-a-dia destas duas águias-de-bonelli e das suas crias. “Estamos confiantes de que esta próxima época de reprodução vai ter mais sucesso.”


Saiba mais.

A águia-de-bonelli (Aquila fasciata), também chamada de águia-perdigueira, é a mais pequena das três grandes águias, em Portugal. Com os seus 1,43 a 1,63 metros de envergadura de uma ponta à outra das asas, é ultrapassada no tamanho apenas pela águia-imperial-ibérica e pela águia-real.

Esta é uma espécie Em Perigo de extinção, segundo o Livro Vermelho dos Vertebrados (2005). A última estimativa em Portugal data de 2011 e apontou para um total de 116 a 123 casais por todo o país. Esta espécie foi um dos principais alvos do LIFE Rupis, um projecto luso-espanhol realizado no Douro Internacional de 2014 a 2020.

Já o projecto LIFE LxAquila, que se realiza até Setembro de 2025, dedica-se à melhoria de condições para estas aves na Grande Lisboa. Além da SPEA e da Tapada de Mafra, conta com outros 11 parceiros, incluindo seis câmaras municipais da região e o Instituto Nacional de Conservação da Natureza e das Florestas. Recorde uma forma simples de ajudar a águia-de-bonelli, lançada no âmbito do projecto.

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.