abutre do Egipto em grande plano
Abutre-do-Egipto. Foto: Pixabay

O que acontece aos britangos que voam de Portugal para África?

Os britangos que habitam o Douro Internacional passam metade do ano nas zonas de invernada. A Wilder foi à descoberta do que é possível saber sobre as vidas “escondidas” que estas aves fazem lá longe, em África.

 

O britango (Neophron percnopterus), também conhecido por abutre-do-Egipto, é o mais pequeno dos abutres europeus, com 65 centímetros de comprimento e uma envergadura de asa que varia entre 1,55 e 1,70 metros. No final do Verão, entre o final de Agosto e Setembro, quase todos partem para a zona sub-sahariana, atravessando o Saara em poucos dias.

 

britango a voar
Foto: Artemy Voikhansky/Wiki Commons

 

A zona fronteiriça do Douro Internacional, no Norte de Portugal e Espanha, concentra uma das mais importantes populações da espécie na Península Ibérica. Em 2016 e 2017, cinco destas aves foram marcadas com emissores GPS, no âmbito do projecto LIFE Rupis – Conservação do britango e da águia-perdigueira no vale do rio Douro (2015-2019).

Rupis, Poiares, Douro, Bruçó e Faia passaram a ser seguidos ao longe pelos conservacionistas deste projecto, apoiado por fundos comunitários e coordenado pela Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA). Objectivo? Saber mais sobre os hábitos de alimentação, rotas e padrões de migração desta espécie Em Perigo de extinção.

 

vê-se-um-emissor-GSM-a-ser-colocado-num-abutre-do-egipto
Marcação de um abutre-do-egipto com emissor GSM. Foto: Life Rupis

 

No entanto, quando migram para África, atravessando em média mais de 3.200 quilómetros até às zonas de invernada, as falhas de rede de telemóvel tornam difícil seguir-lhes os movimentos. Por exemplo, quando atravessam o maior deserto africano: “Os abutres perdem o sinal e deixamos de saber deles durante 10 ou 15 dias. Não há rede de telemóvel no Saara”, explicou à Wilder uma das biólogas envolvidas no LIFE Rupis, Julieta Costa. 

Os abutres que nidificam na Península Ibérica utilizam o chamado corredor ocidental para chegarem até aos locais onde vão passar o Inverno. Atravessam sempre o Atlântico pelo estreito de Gibraltar, uma espécie de ‘gargalo de garrafa’ para muitas espécies que viajam entre a Europa Ocidental e o continente africano. Pensa-se que seguem pelo estreito em bandos muito pequenos.

Através dos dados recebidos por GPS, já foi possível ficar a saber que a passagem do estreito é relativamente rápida: demora cerca de 20 minutos. Mas tem os seus perigos, em especial para aves mais jovens, que por vezes acabam afogadas.

Segue-se o vasto deserto do Saara, com uma área total de mais de 9 milhões de quilómetros quadrados, quase a área da Europa. Ali, não há praticamente cobertura de rede de telemóvel e por isso a informação que chega a Portugal é muito intermitente.

 

mapa com o deserto do sahara
Imagem de satélite onde se observa o deserto do Saara. NASA

 

Entre Setembro e Outubro, dependendo da data em que partiram da região do Douro, estes abutres costumam chegar às zonas onde vão ficar, a sul do deserto – normalmente no Sahel ou próximos desta região. O Sahel é uma faixa com uma largura de 500 a 700 quilómetros, que representa uma zona de transição entre o Saara e a savana africana e atravessa todo o continente, desde o Mar Vermelho até ao Oceano Atlântico.

Neste Inverno, Rupis e Douro ficaram em áreas relativamente próximas. O primeiro estará agora no Mali, numa das áreas do Parque Nacional de La Boucle du Baoulé, que ocupa mais de 25.000 quilómetros quadrados. Nesta Reserva de Biosfera classificada pela UNESCO em 1999, tem sido apontada a falta de meios para proteger as florestas e os animais que ali habitam.

Quanto a Douro, andou pelo oeste do Mali e estará agora no sul da Mauritânia, muito próximo da fronteira entre os dois países.

 

O percurso de Douro nos últimos 30 dias. Imagem: VCF/Life Rupis

 

Sem possibilidade de viajar até ao local, as imagens de satélite transmitidas no Google Earth permitem observar muito ao longe o relevo e as cores, tentar perceber como são as condições de vida na zona de invernada. “Fomos tentar ver o terreno [no Google Earth] e percebemos que esta região tem alguns aglomerados populacionais. Talvez estas pessoas tenham gado, cabras. Para os abutres deve dar jeito parar naquela região, talvez seja a primeira zona de comida depois do deserto.”

 

Zona de fronteira entre Mali e Mauritânia, onde estarão Rupis e Douro. Google Earth

 

Tanto Douro como Rupis estarão por estes meses a alimentar-se e a preparar-se para o regresso às áreas de nidificação em Portugal e Espanha. Comem a carne de animais já mortos, uma vez que são aves necrófagas, e prestam assim um importante serviço ambiental pois travam a disseminação de doenças.

Mas quanto aos outros três abutres, não há sinal há muitos meses. Faia foi o caso mais recente: o sinal foi interrompido em Setembro passado, quando iniciava a travessia do deserto ainda na Argélia, mas nunca mais reapareceu. O que sucedeu? “Não há qualquer ideia.” Poderá ter sido falha dos emissores ou algo mais grave.

 

Na pista do que aconteceu a Paschalis

Isso mesmo foi o que aconteceu a Paschalis, um abutre-do-Egipto marcado na Grécia, em 2013, e que em 2014 morreu na zona de invernada, a sul do Níger, perto da fronteira com a Nigéria. O projecto LIFE+ “O Regresso do Neophron”, desenvolvido na zona dos Balcãs e no corredor migratório oriental destas aves para África, conseguiu chegar ao terreno em busca das pistas deixadas pelos últimos sinais emitidos e descobriu que Paschalis tinha sido caçado para ser vendido a clientes na Nigéria, para ser usado em cerimónias de feitiçaria tradicionais.

Aliás, na área de fronteira entre a Nigéria e o Niger, abutres e corvos são perseguidos intensivamente com este objectivo comercial por caçadores nigerianos, concluiu a equipa do projecto. Essa ameaça que se estende a outros países africanos é acompanhada por outras, como as redes de linhas eléctricas sem qualquer protecção e o uso de armadilhas com iscos envenenados, como apontava a BirdLife Internacional em 2015.

Ainda assim, é muito difícil repetir o mesmo tipo de investigação nas zonas tradicionais de invernada dos abutres vindos da Península Ibérica, como a fronteira entre a Mauritânia e o Mali. “Esta zona é das mais perigosas e das mais remotas no Mali. Tentámos entrar em contacto com empresas que lá estão a trabalhar mas não encontrámos ninguém que andasse por aqueles lados”, nota Julieta Costa.

Com efeito, o Mali tem sido cenário de uma terrível guerra civil que opõe várias facções de extremistas islâmicos e grupos separatistas entre si e que lutam também contra o governo local. Como avisou um especialista das Nações Unidas esta terça-feira, em especial no norte e no centro do país há “um sentimento profundo de medo e de insegurança”, que se tem vindo a estender a todo o território.

Entretanto, se tudo correr bem, entre este Fevereiro e Abril os abutres estarão de volta à região do Douro Internacional, depois de mais uma longa viagem de regresso.

 

britango frente a um buraco numa arriba
Abutre-do-Egipto nas arribas do Douro. Foto: LIFE Rupis

 

E Rupis vai ser alvo de uma atenção mais especial. Já estará na sua maturidade completa, com 5 primaveras e pronto para nidificar. Como ainda não se sabe se é macho ou fêmea, este ano já será possível tentar adivinhar, observando o seu comportamento: “As fêmeas têm um comportamento de choco, diferente dos machos, que voam para trazer comida.”

 

[divider type=”thin”]Saiba mais.

Pode seguir aqui os movimentos de Douro e de Rupis, captados no âmbito do LIFE Rupis, com poucos dias de desfasamento.

 

[divider type=”thin”]Precisamos de pedir-lhe um pequeno favor…

Se gosta daquilo que fazemos, agora já pode ajudar a Wilder. Adquira a ilustração “Menina observadora de aves” e contribua para o jornalismo de natureza. Saiba como aqui.

 

Inês Sequeira

Foi com a vontade de decifrar o que me rodeia e de “traduzir” o mundo que me formei como jornalista e que estou, desde 2022, a fazer um mestrado em Comunicação de Ciência pela Universidade Nova. Comecei a trabalhar em 1998 na secção de Economia do jornal Público, onde estive 14 anos. Fui também colaboradora do Jornal de Negócios e da Lusa. Juntamente com a Helena Geraldes e a Joana Bourgard, ajudei em 2015 a fundar a Wilder, onde finalmente me sinto como “peixe na água”. Aqui escrevo sobre plantas, animais, espécies comuns e raras, descobertas científicas, projectos de conservação, políticas ambientais e pessoas apaixonadas por natureza. Aprendo e partilho algo novo todos os dias.