Coruja. Biodiversidade. Foto: KevinsPhoto/Pixabay

Sérgio Henriques: “Não nos podemos dar ao luxo de ignorar a crise da biodiversidade e estamos a ficar sem tempo”

O que pode 2021 trazer para a Biodiversidade e para a Conservação da Natureza? Com o ano que começa, a Wilder lança cinco perguntas a especialistas e responsáveis portugueses que trabalham para conhecer ou proteger o mundo natural.

Sérgio Henriques é coordenador de conservação de invertebrados para o Global Center for Species Survival, no Zoo de Indianapolis e a Species Survival Commission do IUCN

WILDER: O que espera de 2021 para a Conservação da Natureza em Portugal e no mundo?

2020 iria ser o ano da Biodiversidade, mas muitos eventos internacionais foram adiados para 2021, na esperança que os números da Covid-19 baixem para permitir novamente grandes concentrações de pessoas em segurança.

Contudo, a pandemia também tornou claro que a destruição da natureza, mesmo nos cantos mais remotos do planeta, está ligada à nossa própria saúde e ao surgimento de doenças zoonóticas (transmitidas por animais, como o COVID19). Por isso, foi disponibilizada uma quantidade excepcional de oportunidades de financiamento para a conservação da natureza na União Europeia e no mundo, definindo metas ambiciosas para 2030 para reverter a atual crise da biodiversidade e garantir que as pessoas e a natureza possam prosperar em conjunto.

Mas historicamente oportunidades destas têm sido, repetidamente, desperdiçadas, usadas para criar novas áreas protegidas mas sem garantir o apoio necessário para funcionarem (como a promessa não cumprida da revisão e valorização da carreira de Vigilante da Natureza em Portugal). Definindo novas políticas ambientais ou agrícolas que, mesmo quando baseadas na Ciência, são guiadas por modelos de computador. Esquecendo que políticas e modelos são apenas tão fiáveis quanto os dados em que se baseiam e os dados precisam de vir de investigação sobre que espécies temos, quando e onde. Sem dados credíveis sobre toda a biodiversidade, gerados por um sólido investimento em programas de monitorização no terreno, ou mesmo descrição de espécies de grupos menos estudados, não podemos esperar conseguir medir o impacto das atividades humanas ou o impacto dos esforços de conservação, como a reflorestação. O que põe em causa as previsões e, consequentemente, as políticas que dependem delas. É por isso que a taxonomia e a monitorização são fundações essenciais para a conservação da natureza.

Por isso, espero que em 2021 se apoie mais monitorização científica e que um número maior de pessoas se envolva na Ciência Cidadã. Mas espero que possamos ir mais além e que o potencial da tecnologia que usamos no dia-a-dia permita não apenas recolher mais dados mas também envolver as comunidades locais na proteção da biodiversidade que registam.

Também espero que possamos alcançar um melhor equilíbrio entre os recursos que gastamos em modelação de dados já publicados e o muito necessário aumento no apoio que damos àqueles que publicam esses dados, que descrevem novas espécies para a Ciência, àqueles que registam vida selvagem que já não era vista há décadas, àqueles que monitorizam a saúde das populações selvagens e, especialmente, garantir a segurança laboral e física dos defensores da natureza.

W: No seu entender, quais devem ser as prioridades para este ano em prol da natureza em Portugal? E mais concretamente, para a presidência portuguesa da União Europeia?

Nenhuma das metas de 2010 foram cumpridas até 2020 e isso é algo que não podemos deixar acontecer de novo em 2030. Por isso, a presidência portuguesa ou qualquer outra presidência nesta década deverão trabalhar de perto com outros países das Nações Unidas para dar prioridade a políticas que nos permitam cumprir essas metas, antes que seja tarde demais para reverter as tendências actuais.

A nível nacional, Portugal é uma nação marítima e seria sensato usar a nossa posição privilegiada na União Europeia para fazer avançar a agenda da conservação das espécies marinhas em termos de conservação desse ecossistema e da sustentabilidade deste recurso natural. O mar é uma parte importante do nosso património cultural e penso que é importante enfatizar e proteger a estreita relação entre as pessoas e o ambiente, em vez de os separar. Um ambiente gerido de forma sustentável representa um futuro mais justo para todos.

As actuais restrições impostas pela Covid-19 revelaram o quanto Portugal precisa de uma utilização mais sustentável dos seus recursos naturais, e o quão pouco fiável, de facto, é o turismo de massas para a economia portuguesa. Além dos impactos ambientais que causa (com o desenvolvimento urbano nas regiões costeiras, por exemplo), além da fraca segurança dos postos de trabalho ditada pela sazonalidade do sector, além da subida nos preços das casas, especialmente nas zonas dos centros das cidades (o que tem forçado muitas pessoas a viagens cada vez mais longas para o trabalho, gerando mais emissões de gases com efeito de estufa), o turismo massificado revelou não ser uma estratégia económica duradoura.

Por isso, esta é a altura certa para repensar o nosso lugar na Europa e no mundo, apostando numa visão diferente, a longo prazo, de turismo sustentável em vez de querer lucros a curto prazo.

Outra grande questão, levantada pelos impressionantes incêndios florestais dos últimos anos em Portugal, é a importância de gerirmos os habitats florestais e os seus recursos de forma a minimizar o risco de grandes incêndios no futuro e a tornar a floresta numa parte importante da nossa economia, garantindo a segurança da vida selvagem e das populações humanas. Reconhecer que o fogo é um componente natural dos ecossistemas mediterrâneos é um bom primeiro passo. Assim, o objectivo nunca deveria ser eliminar o fogo mas sim geri-lo. 

Outra parte importante da equação deveria ser estarmos conscientes de que a emergência climática deverá aumentar a probabilidade de fenómenos climatéricos extremos, que facilitam o deflagrar de grandes incêndios no futuro, e Portugal será um país especialmente afectado. O debate sobre as alterações climáticas deverá ser uma elevada prioridade para qualquer liderança na União Europeia e no mundo.

W: Quais as espécies ameaçadas que, na sua opinião, precisam de ajuda premente em 2021?

Penso que o nosso foco não deve ser numa espécie em particular, mas que devemos tentar preservar a funcionalidade dos ecossistemas para que possam continuar a desempenhar o seu papel na manutenção dos serviços da natureza, dos quais todos dependemos. Todas as pessoas gostam de espécies coloridas ou que acreditam serem semelhantes a nós. Normalmente são grandes predadores, que é como culturalmente gostamos de nos ver, ou animais que apelam aos nossos instintos maternais/paternais, que facilmente nos imaginamos a cuidar, a alimentar ou a acarinhar. Não há nada de errado em gostar de pandas ou admirar o voo majestoso de uma águia. Mas os nossos sentimentos em relação às espécies não são um critério científico para a sua conservação.

A nossa obrigação moral enquanto comunidade científica é o de reunir informação de forma regular sobre toda a biodiversidade, que nos permita compreender que espécies estão ameaçadas, quais são as ameaças, planear o que garantirá a essas espécies prosperar e depois agir de forma a fazer isso acontecer. Muito poucas pessoas se apercebem da importância de proteger uma mosca ou uma minhoca, mas esses são os animais que polinizam as flores que produzem os frutos que comemos ou que mantêm a saúde dos solos nos quais cultivamos os nossos alimentos. Seria como a comunidade médica fazer análises regulares ao coração, mas ignorar o sangue. As plantas, fungos e os invertebrados são como os pulmões, as veias e o sangue dos ecossistemas. Podem não ter o mesmo apelo que o coração, mas nós precisamos de todos os nossos órgãos para sobreviver.  
Não há nada de errado em proteger uma espécie de que gostamos, mas não nos podemos dar ao luxo de ignorar a crise da biodiversidade e estamos a ficar sem tempo. Para a nossa própria saúde, precisamos garantir que os ecossistemas naturais não entrem em colapso de forma irreversível.

W: Se coubesse a si decidir, qual seria a principal medida que tomaria este ano para tentar travar a extinção das espécies?

Se não conseguirmos reverter a emergência climática e permanecer dentro do limite de 2ºC, as consequências serão desastrosas, para as pessoas e para a vida selvagem. Quanto mais tempo esperarmos, mais recursos teremos de gastar para responder ao vasto conjunto de desafios que temos pela frente. Por isso, esta deveria ser a prioridade na agenda de qualquer decisor político, quer seja na área do Ambiente, da Agricultura ou mesmo da Economia. Que políticas e medidas específicas serão mais eficazes para nos manter dentro do limite dos 2ºC, não sei dizer, não sou político. O que sei é que, aconteça o que acontecer, vai depender das decisões que tomamos todos os dias e do quanto conseguimos influenciar as empresas e os decisores políticos.

Assim, a medida que acredito ser crucial apoiar é a literacia para a conservação. Precisamos informar o maior número de pessoas possível das consequências da emergência climática e também da perda da biodiversidade, e deixar as pessoas decidir o que fazem sobre isso. No final do dia todos somos responsáveis pelo legado que escolhemos deixar para a próxima geração. Estamos todos juntos nisto. Só há um planeta Terra. 

W: Qual, ou quais, os projectos na área da Biodiversidade em que estará a trabalhar em 2021 que mais o entusiasmam?

Além dos vários projectos científicos que usam novas tecnologias para travar o tráfico de espécies selvagens online e para monitorizar pequenos animais (para medir o sucesso da libertação de animais criados em cativeiro na natureza), o projecto que mais me entusiasma é, de longe, o meu envolvimento no Global Center for Species Survival. Com sede no Zoo de Indianapolis, nos Estados Unidos, que tem como objectivo apoiar e conectar de forma estratégica o trabalho de mais de 10.000 conservacionistas da Comissão para a Sobrevivência das Espécies, da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN). Este é o primeiro centro deste tipo e estou muito entusiasmado com a oportunidade de me juntar a uma equipa internacional de peritos para amplificar os esforços de protecção da natureza. Dentro em breve espero darmos aos leitores da Wilder mais detalhes sobre este projecto.


Recorde as respostas de:

Helena Freitas

Ângela Morgado

Ricardo Rocha

Miguel Dantas da Gama

Paula Nunes da Silva

Miguel B. Araújo

Patrícia Garcia-Pereira

Domingos Leitão

Humberto Rosa

Francisco Ferreira

Emanuel Gonçalves

Jorge Palmeirim


Já que está aqui…

Apoie o projecto de jornalismo de natureza da Wilder com o calendário para 2021 dedicado às aves selvagens dos nossos jardins.

Com a ajuda das ilustrações de Marco Nunes Correia, poderá identificar as aves mais comuns nos jardins portugueses. O calendário Wilder de 2021 tem assinalados os dias mais importantes para a natureza e biodiversidade, em Portugal e no mundo. É impresso na vila da Benedita, no centro do país, em papel reciclado.

Marco Nunes Correia é ilustrador científico, especializado no desenho de aves. Tem em mãos dois guias de aves selvagens e é professor de desenho e ilustração.

O calendário pode ser encomendado aqui.

Helena Geraldes

Sou jornalista de Natureza na revista Wilder. Escrevo sobre Ambiente e Biodiversidade desde 1998 e trabalhei nas redacções da revista Fórum Ambiente e do jornal PÚBLICO. Neste último estive 13 anos à frente do site de Ambiente deste diário, o Ecosfera. Em 2015 lancei a Wilder, com as minhas colegas jornalistas Inês Sequeira e Joana Bourgard, para dar voz a quem se dedica a proteger ou a estudar a natureza mas também às espécies raras, ameaçadas ou àquelas de que (quase) ninguém fala. Na verdade, isso é algo que quero fazer desde que ainda em criança vi um documentário de vida selvagem que passava aos domingos na televisão e que me fez decidir o rumo que queria seguir. Já lá vão uns anos, portanto. Desde então tenho-me dedicado a escrever sobre linces, morcegos, abutres, peixes mas também sobre conservacionistas e cidadãos apaixonados pela natureza, que querem fazer parte de uma comunidade. Trabalho todos os dias para que a Wilder seja esse lugar no mundo.