O sisão é uma das espécies que poderão ser mais afectadas pela construção da barragem, afirma a C6. Foto: Pierre Dalous/Wiki Commons

O desafio de conservar o sisão em Portugal

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Olhando em retrospetiva, seria difícil imaginar um cenário tão negativo quanto o que estamos a viver no que respeita à conservação do sisão (Tetrax tetrax) em Portugal.

João Paulo Silva, Ana Teresa Marques, Carlos Pacheco, Francesco Valério, João Gameiro (Grupo SteppeBirdsMOVE / CIBIO-InBIO)

Olhando em retrospetiva, seria difícil imaginar um cenário tão negativo quanto o que estamos a viver no que respeita à conservação do sisão (Tetrax tetrax) em Portugal. Quando a espécie foi classificada como Vulnerável pelo Livro Vermelho em 2005, teve-se em consideração possíveis cenários de alterações agrícolas que pudessem ameaçar a espécie, à semelhança do que estava a ser registado em França e a começar a ser reportado em Espanha. Mas não esperávamos que se agravasse a este ponto num período tão curto. 

A população reprodutora de sisão declinou 77% desde 2006 e 60% desde 2016. Passámos de uma situação em que a espécie se encontrava em bom estado de conservação para valores preocupantes de viabilidade. Não só temos densidades reprodutoras baixas de machos, como também uma proporção muito maior de machos relativamente ao número de fêmeas. Infelizmente esta tendência de declínio populacional acentuado também se observa noutras espécies estepárias, como a abetarda (Otis tarda) e a águia-caçadeira (Circus pygargus).

Porque está o sisão a apresentar um declínio tão acentuado? São várias as razões, que estarão muito possivelmente a atuar de forma sinérgica:

1. Alterações das práticas agrícolas

O sisão é uma espécie que ocorre em áreas agrícolas e pastagens. Está particularmente bem adaptado à cerealicultura extensiva que favorece a ocorrência de uma diversidade de habitats como searas, restolhos e pousios pastoreados, alqueives (lavrados) e leguminosas. Este mosaico permite suster a espécie ao longo do ciclo anual, destacando-se a importância dos pousios durante o período reprodutor e dos restolhos no período outono – inverno.

Nos últimos 20 anos registou-se uma clara tendência de especialização das explorações agrícolas, homogeneizando a paisagem e simplificando uma matriz de habitats outrora complexa. Nos solos mais produtivos, muitos dos quais infraestruturados com regadio, tem-se verificado uma tendência para a instalação de cultivos permanentes – como vinhas, olivais ou amendoais – cuja estrutura arbustiva/arbórea representa uma total perda de habitat para as aves estepárias. Nas propriedades coincidentes com solos menos produtivos e de sequeiro predominam agora as pastagens permanentes e culturas forrageiras para produção de gado, sendo cada vez mais dominante o      bovino, em detrimento do ovino. Este sistema tem vindo a ser intensificado, registando-se um aumento significativo do encabeçamento. Tal tem implicações na estrutura da vegetação, que se mantém demasiado baixa, principalmente nos anos mais secos. A vegetação adequada à nidificação do sisão subsiste muitas vezes nas parcelas utilizadas para produção de culturas forrageiras (i.e. fenos), que são cortadas mais cedo que os cereais para grão, em plena fase de nidificação. O corte antecipado destrói ovos, mata crias e, por vezes, até as fêmeas. Esta é uma armadilha ecológica para o sisão e para outras espécies ameaçadas (entre muitas outras que nidificam no solo), destacando-se a águia-caçadeira ou a abetarda que também registam declínios insustentáveis em Portugal.

O desenho das políticas agrícolas no início do século não foi acompanhado por uma avaliação de impacto dos valores naturais, inviabilizando a possibilidade de mitigar estas medidas ou de as ajustar no tempo para as tornar mais compatíveis com a conservação das aves estepárias, ou da biodiversidade no seu todo. Desde que foi criada, a Política Agrícola Comum (PAC) tem procurado encontrar soluções mais amigas da natureza através de medidas agro-ambientais, mas ultimamente as medidas não têm tido em conta o conhecimento sobre a biologia destas espécies dependentes de meios agrícolas. Por outro lado não têm sido atrativas para os agricultores, dado que são de cariz voluntário. Veja-se como exemplo a medida coincidente com o quadro anterior referente ao apoio zonal que teve uma adesão vestigial de apenas 48 aderentes para toda a área estepária do Alentejo, com a exceção de Castro Verde.

2. Alterações climáticas

Em anos de seca, a estrutura da vegetação é ainda mais impactada pelo pastoreio. Uma altura reduzida da vegetação pode comprometer a disponibilidade alimentar (plantas e insetos) assim como a sua capacidade de promover refúgio, fundamental para estas aves se abrigarem de predadores, do sol e do calor. 

Já foi evidenciado que os anos de seca impactam o final da reprodução. Quanto mais cedo seca a vegetação verde de que o sisão depende, mais cedo as aves se movimentam para fora das áreas de reprodução, o que pode encurtar a época reprodutora e inviabilizar segundas posturas. Utilizando indivíduos marcados com GPS, também se revelou que o nível de atividade diária do sisão é reduzido pelas temperaturas elevadas que, por sua vez, não é compensada fora do período de luz do dia. Isto significa que os sisões têm uma janela temporal limitada para realizar atividades fundamentais como reproduzir-se e alimentar-se e que poderá estar a reduzir-se com o aquecimento global. 

3. Impactos das infraestruturas energéticas

Linhas eléctricas

É sabido que as linhas elétricas podem representar um risco de mortalidade por colisão para os sisões. A problemática prende-se principalmente por a espécie, tal como outras estepárias, estar adaptada a meios abertos e a sua perceção visual não estar adaptada para detectar obstáculos em voo. Os nossos estudos evidenciam uma mortalidade anual entre 3 e 4% da população adulta           devido à colisão com estas infraestruturas (sobretudo da REN e da EDP). Estima-se que este impacto seja muito significativo. É certo que têm vindo a ser implementadas medidas de minimização, mas estas são pouco ou nada eficazes para aves como o sisão ou a abetarda. Deveria considerar-se a implementação de medidas de compensação, sobretudo tendo em atenção que é difícil “repor” as aves que se perdem todos os anos, e quando se suspeita que a espécie esteja a ter dificuldades em reproduzir-se. 

Projetos com energias renováveis

Entendemos que há um risco de mau ordenamento de projetos de energias renováveis, principalmente parques fotovoltaicos e respetivas linhas elétricas de evacuação. As novas instalações previstas para as próximas décadas vão ser de grande dimensão e irão coincidir preferencialmente com áreas abertas, diminuindo ainda mais o habitat estepário. Está previsto um mecanismo que permite um licenciamento mais rápido na sequência da aplicação da Diretiva Comunitária de promoção de Energias Renováveis – as “Go To Areas” – através da identificação prévia de áreas passíveis de instalação de unidades de produção de energia de fonte renovável. À data, foi feita uma primeira cartografia das áreas disponíveis para instalação de novos projectos com base em vários condicionantes, incluindo os valores naturais e distribuição de espécies ameaçadas, um trabalho coordenado pelo Laboratório Nacional de Energia e Geologia e que contou com a participação do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas. De forma inexplicável as aves estepárias, que coincidem com o grupo de vertebrados terrestres mais ameaçados da Europa, não foram consideradas nesta cartografia a não ser pela identificação das áreas classificadas como Zonas de Proteção Especial (ZPE) que são coincidentes com as áreas reprodutoras mais importantes. As áreas Go-To identificadas não consideram áreas importantes durante o resto do ciclo anual (pós-reprodução e invernada), as áreas de conectividade e áreas reprodutoras conhecidas que se encontram fora de áreas classificadas. Este é um tema central de discussão em Espanha aquando da instalação de projetos de energias renováveis, principalmente de parques fotovoltaicos. É urgente travar mais perda e fragmentação de habitat e assegurar que futuros projetos tenham em conta a ocorrência de aves estepárias ao longo do ciclo anual.

Que ações poderão ser implementadas para reverter a tendência de declínio?

O sisão é uma espécie ameaçada e prioritária em termos de conservação ao abrigo da Diretiva Aves e que justificou a classificação de uma rede de ZPE no Alentejo. É uma espécie indicadora de biodiversidade de aves em meios agrícolas e portanto uma espécie “guarda-chuva”, pelo que conservar o sisão é contribuir para a conservação da comunidade de aves estepárias e manter elevados níveis de biodiversidade. Até à data, a estratégia de conservação para o sisão e outras aves estepárias baseou-se apenas na implementação de Zonas de Proteção Especial e no desenho de medidas agro-ambientais, sendo inexistentes quaisquer outras medidas de gestão. O declínio de quase 10% ao ano da população que subsiste evidencia que esta estratégia não funcionou. É imperativo mudar o paradigma e passar a gerir ativamente a população de sisão (e de outras espécies estepárias). Importa implementar um plano de emergência nacional para suster a perda populacional da espécie. Apresentamos seis sugestões de ações com o objetivo de melhorar a produtividade reprodutora, aumentar a sobrevivência e reduzir a mortalidade não natural.

1. Gestão de emergência da população reprodutora. Face ao tamanho populacional e o forte declínio é relevante identificar, monitorizar, caracterizar e proteger as áreas onde a espécie se está a reproduzir com sucesso (com uma elevada resolução espacial, à escala da parcela agrícola). Estes locais correspondem a situações prioritárias de conservação e onde deverão ser estabelecidos contratos de gestão com os agricultores nas situações onde o habitat de reprodução poderá estar a ser ameaçado (corte de feno, por exemplo). 

2. Criação de uma rede de reservas de gestão de longo termo. Em áreas importantes de ocorrência de sisão propõe-se que sejam implementadas medidas de gestão dirigidas para o sisão (e outras espécies estepárias), desligadas dos apoios da PAC. Tal representa uma mudança de paradigma no que diz respeito à conservação das aves estepárias, dado que até à data as medidas de conservação têm sido promovidas exclusivamente através de medidas agroambientais (ultimamente mal desenhadas) de adesão voluntária por parte dos agricultores. A criação e gestão destas reservas pode ser assegurada, à semelhança do que tem acontecido em Espanha, com financiamentos de medidas compensatórias provenientes de projetos de regadio, infraestruturas eléctricas e projectos de energias renováveis, projectos que têm um impacto directo ou indireto no declínio do sisão. Esta medida é sobretudo importante se tivermos em atenção que a espécie é fiel aos locais de reprodução entre anos.

3. Ajustar/adaptar as medidas agro-ambientais. Recuperando a figura do set-aside ou criando uma nova unidade de gestão, propõe-se que os pousios ou pastagens não sejam pastoreados durante o período reprodutor em áreas relevantes para aves estepárias. Esta medida previne a perturbação e o pisoteio, promovendo o habitat de reprodução (onde ocorre o acasalamento) e de nidificação (onde as fêmeas constroem os ninhos). A gestão destas parcelas deve manter-se entre anos, pois a estabilidade do habitat ao longo dos anos favorece o sistema reprodutor em “leque” do sisão. Por outro lado, não devem ser admitidos fenos em medidas agro-ambientais ou, em alternativa, o seu corte deverá ser interdito durante todo o período reprodutor.

4. Salvaguardar habitat no período pós-reprodutor. As áreas agrícolas abertas em solos produtivos como os que se localizam na região de Beja, são importantes para o sisão durante o verão, uma vez que é para estes locais que as aves se deslocam quando a disponibilidade de alimento nas suas áreas reprodutoras diminui. Uma parte substancial destas áreas foi convertida para cultivos permanentes ou centrais fotovoltaicas, sendo fundamental garantir que o habitat aberto se mantenha. Outra medida passa por promover leguminosas (como a luzerna) em áreas de regadio, por constituir uma preferência alimentar de elevado valor proteico.

5. Promover o habitat de invernada. Em áreas de invernada é fundamental assegurar a presença de restolhos cortados a uma altura de 30-40 centímetros. Para além da disponibilidade de alimento, este habitat confere proteção contra os predadores.

6. Elaborar cartografias de sensibilidade para instalação de energias renováveis e linhas elétricas. Estas poderiam ajudar no ordenamento destas infraestruturas, por forma a evitar que futuros projectos coincidam com áreas de maior importância para as estepárias, em diferentes fases do ciclo anual.

Por último, salientamos que o desafio passa necessariamente por envolver os diferentes setores da sociedade nas soluções que se vierem a adotar, seja a administração, a academia, as ONG e principalmente os agricultores e Associações de Agricultores. Garantir a estabilidade, a previsibilidade e a atratividade das medidas de gestão são aspetos cruciais que deverão ser considerados visando um plano de conservação a longo prazo desta espécie.


Saiba mais aqui sobre o risco de extinção do sisão em Portugal.